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10 DE DEZEMBRO DE 1954 171

E curioso verificar como o seu espírito é sensível a todas as inadaptações legislativas dos princípios reformistas. E conclui: «é porque a sua aplicação entre nós é defeituosa e má».
Que admira que Garrett, iludido por um idealismo que legislava sobro conceitos puros e abstraía das impurezas ou insuficiências dos homens, não descortinasse a fatalidade inevitavelmente humana do erro original da instituição, se foram precisos mais de cem anos de experiência para tomar em conta o vício psicológico da sua concepção!
Aqui ainda Garrett parlamentar consegue dar-nos um exemplo de sinceridade admirável e de perfeito desassombro em Garrett, o equivocado. E entretanto ele andara perto da essência do problema ao estigmatizar os inconvenientes do sistema eleitoral.
Também o erro da selecção democrática das urnas, quando postas ao serviço incondicional do confusionismo e das desordens dos partidos, mão escapara à visão da sua inteligência e à honradez do seu espírito, ao reconhecer no discurso parlamentar de 9 de Outubro de 1837 que tudo quanto se fez de prejudicial à vida da Nação - ca ruína da Fazenda Pública, a desorganização do Estado, a corrupção moral do cidadão e, enfim, «a confusão de ideias do justo e do injusto» - era a consequência da supremacia quantitativa e irresponsável das urnas: «pois foi pela urna, foi pela sujeição dela a um partido que nos vieram todas essas calamidades ». E acrescenta, com o acento trágico do desiludido que semeou ventos e agora se confrange com a colheita das tempestades: «quanto a mim, tenho a infelicidade de ver, próximos e inevitáveis, futuros muito piores. Oxalá que me engane». Não se enganou:

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O espírito e a experiência de Garrett vão-no afastando cada vez mais da utopia para voltar a contemplar as verdades eternas. E, reconhecendo a mistificação ideológica de uma Gamara inteiramente seleccionada pela incompetência política das multidões, advoga a necessidade de combinar a eleição popular com a intervenção da Coroa. Tomava-se necessário preservar os interesses do Estado da supremacia dum injusto poder conferido pelas urnas.
O rei, que para Garrett era o mais alto e natural representante da Nação, proclamava-o ele o grande eleitor nacional. Em seu entender, mais do que nenhuma condição, é a hereditariedade que lhe garante o alheamento das intrigas, eleitorais, e só ele se mantém em plena liberdade, invulnerável às manobras dos habilidosos ou ambiciosos manejadores do voto das multidões, porque a sua independência resulta de um direito próprio e não depende de ninguém.
Apreciadas as vantagens da hereditariedade em relação ao pariato, logo Almeida Garrett esclarece os inconvenientes da extensão deste privilégio, que para salvaguarda do povo deve confinar-se apenas ao rei. E acaba por preconizar uma Câmara Alta constituída em parte por escolha do Chefe da Nação, a qual o orador considera o organismo mais apto para superiormente orientar a política do Estado, em conformidade com os votos duma Câmara eleita pelo sufrágio popular.
Não podia Garrett encontrar melhor fórmula dentro do espírito da sua querida Carta Constitucional. Colocado por vezes num ponto de colisão entre as ideologias liberais que toda a vida trausviadamente servira e o reconhecimento da superioridade das estruturas nacionais que ajudara a destronar, sente-se o esforço de Garrett para conciliar os apriorismos filosófico-políticos da doutrina liberal, que ele próprio fora buscar ao estrangeiro, com as vantagens reconhecidas nos sistemas derrubados - bem próprios de Portugal. Era preciso ressalvar a intangibilidade daquela Carta, que tanto o enfeitiçara e que afinal não tinha mais virtudes em política do que as suas pobres cartas de amor em epistolografia...
«Estará o vício das instituições ... nessas regras fundamentais que a Carta consagrou? Não, senhores - responde Garrett, ainda não libertado dos seus dramáticos equívocos -: o mal está nos corolários que dela temos tirado, nas leis que para sua execução temos feito. Era como quem dissesse que o mal não estava na árvore, mas nos frutos que da própria árvore nasciam.
Ao querer substituir a monarquia desvirtuada pelo absolutismo de Pombal e regressar à monarquia representativa e tradicionalista, os olhos do seu espírito encontravam-se demasiado ofuscados pela mitologia ideológica do liberalismo intruso para poder descortinar os fundamentos nacionais do sistema corporativo.
E contudo esse sistema melhor corresponderia aos seus desejos do que o complexo sistema representativo exposto nas sessões de 9 e 12 de Outubro de 1837. A sua inteligência luta por desenvencilhar-se do enredo de teses e de antíteses em que se sente 'embaraçada, e não encontra um rumo seguro por onde os princípios possam singrar, sem os -riscos de fazer que a Nação naufrague contra os escolhos de Cila ou se desfaça nos rochedos de Caríbdis.

Com tão profundo nacionalismo como era o de Gar- ' rett, é necessário que seja bem insidioso o filtro do liberalismo para conseguir embotar a agudeza tão per-cuciente da sua inteligência, conseguindo que o homem que tão bem soube compreender a instituição medieval do municipalismo não soubesse distinguir nela a arquitectura social da Casa dos Vinte e Quatro.

Ali encontraria o reformador essa pequenina câmara corporativa que em cada concelho funcionava como organismo integrado na câmara municipal. Se a meditação do estadista houvesse incidido sobre as corporações medievais, certamente que o seu espírito encontraria a solução do problema representativo naquela forma que tão bem se ajustava ao seu esclarecido culto da tradição e ao amor pelo povo, que mais do que ninguém ele procurou servir.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O drama do Garrett provém da constante verificação da falência das reformas com que procurava reintegrar Portugal no clima político da monarquia medieva. Apesar de todas as ânsias de reformar a Nação, ele permanece inflexivelmente fiel ao que Babcac chamava as duas verdades eternas: a religião e a monarquia. Por isso constantemente' se confrange com o desmoronamento rias suas ilusões.

No célebre relatório sobre conventos de freiras Gar-rett ousa afirmar:

Devem pesar sobre a consciência do partido liberal, que há um quarto de século reina, as justas objurgações que a posteridade forçosamente nos há-de fazer por esta persistência de ignávias.

E em 4 de Março do mesmo ano, acusando o Governo de fazer perseguições religiosas, refere-se ao Vaticano para afirmar que ele constitui um poder a quem devemos submissão. E exclama:

Não me pejo de o dizer, porque pertenço a um ' país católico, porque sou católico e porque, ainda que o não fosse, como representante desse país, devia-o declarar submisso a esse poder.