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352 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 117

tura e da História. É a continuação de um diálogo que Portugal háa oito séculos mantém com a Flandres e o Brabante, colóquio de guerreiros, de mercadores, de doutores, de artistas, de príncipes, que se ouviu nos campos de batalha e nas Universidades, nas catedrais e nas feitorias, nos mercados e nos castelos, nos paços ducais e nas pinacotecas ofuscantes, e cujos ecos nós escutamos ainda - voz das cachoeiras e das florestas - ao longo da extensa fronteira que nos separa - ou nos une - na África. À primeira questão apresentada esta Câmara não pode responder senão pela afirmativa. O Acordo cultural entre Portugal e o reino da Bélgica, instrumento de superior interesse e de evidentes vantagens para os dois países, não propicia apenas uma colaboração que começa; assegura, na sua luminosa expressão político-jurídica, a perenidade de uma obra que continua.

3. Portugal e a Bélgica, consideradas na linguagem diplomática «nações de influência restrita», são, de facto, grandes nações. O que caracteriza hoje um u grande nação não é apenas a sua extensão territorial, nem o seu volume demográfico, nem o poder dos seus armamentos militares, nem a resistência da sua armadura económica: - é a sua missão criadora de altos valores humanos; é o papel que essa nação desempenhou na história da cultura e da civilização. Á fatalidade geográfica deu aos nossos dois povos, dotados da mesma virtualidade civilizadora, diferentes destinos. Nós, atirados para o extremo ocidental do continente europeu, integrámos e estabilizámos desde a primeira hora o nosso território na sua expressão definitiva - pequena varanda debruçada sobre o mar. Às duas partes da Bélgica, porém - a Lotaríngia germânica e a Flandres romanizada -, separadas pelas brumas do Escalda, permaneceram durante séculos voltadas uma para a outra - duas metades da mesma áurea romã coroada, esplêndidas de riqueza e de cor -, à espera de que a França por um lado, o Santo Império por outro, as deixassem unir-se um dia. Enquanto esperavam a unidade política, nessa perigosa encruzilhada que foi o camp de drap d'or das grandes batalhas da Europa, fortaleceram pouco a pouco a sua unidade nacional e realizaram - o que especialmente nos interessa agora - a obra maravilhosa da unidade da sua cultura. Antes de ser, de facto, um Estado, a Bélgica, pelo prestigio das suas Universidades, pelo orgulho das suas corporações medievais, pelo mecenato sumptuoso dos seus duques letrados e dos seus banqueiros filólogos, pelo fulgor da sua arte - de Van Eyck a Memling, de Tenniers a Rubens -, pelo benemérito esforço dos seus impressores, cujos prelos, como o de mestre Plantino de Antuérpia, ajudaram «difundir o génio da Renascença -, a Bélgica, repetimos, tornou-se o ponto de cruzamento de todas as grandes correntes do pensamento europeu, uma das metrópoles universais do Humanismo, realmente digna de ter inspirado a Utopia, de Morus, nova Escola de Atenas a que presidiu, sentado em majestade na sua cátedra do Colégio das Três Línguas, de Lovaina, Erasmo Roterdamo, cidadão) do Mundo. Nessa altura, e muito antes disso, outro «pequeno grande povo» -como alguém - nos chamou -, animado do mesmo génio universalista e do mesmo espírito cristão, assembleia obscura e silenciosa de mareantes e de sábios - cartógrafos, cosmógrafos, astrónomos, matemáticos -, estava já realizando a mais vasta empresa de investigação científica que até aí a humanidade conhecera: as navegações e os descobrimentos dos séculos XV e XVI. Tanto, pelo menos, com os interesses económicos (as próprias feitorias portuguesas da Flandres tratavam também do intercâmbio universitário e das aquisições de arte), foi a intercultura que nos aproximou. Ela representa para as duas nações uma tradição gloriosa. É justo que tenha o seu estatuto.

4. As relações catre Portugal e os velhos condados que hoje constituem a nação belga, mormente a Flandres, começaram - como em geral começa o convívio do todos os povos - pelas peregrinações religiosa», pelo comércio terrestre e marítimo, pelas expedições militares, pelas alianças dinásticas e ainda, no caso de que nos ocupamos, pela colonização estrangeira. Antes de Portugal existir como Estado independente já os príncipes, os nobres de Gand, os mercadores de Bruges, a gente loira e gigantesca das comunas brabantinas vinha todos os anos em peregrinação a Santiago de Compostela, seguindo o itinerário a que aas velhas crónicas chamaram depois o «caminho da Espanha». Um dos peregrinos, Henrique de Borgonha, príncipe flamengo, descendente por linha de varonia dos monarcas de França, foi o pai do primeiro rei de Portugal. Por esse tempo já as naus normandas, as barcas vikings, as galés de Antuérpia visitavam as costas portuguesas para - levar - de cá o pouco que nós podíamos e u tão vender-lhes: «amêndoas, figos, romãs e uvas» (Portagem de Bapaume, ano de 1202). Com os Cruzados - armadas de Deus - Portugal recebe, para completa vertebração do seu território, o auxílio de vários povos e, em especial, dos Flamengos, os «homens dos braços de ferro», «fortissimi ominum horum», que Júlio César, dominador das Gálias, exaltava já nas páginas admiráveis dos Comentarias. Os germano-flamengos do conde de Aerschot e de Cristiano de Gistell ajudam-nos, em 1147, a conquistar Lisboa. Em 1188, na segunda Cruzada, os flamengos de Jacques d'Avesnes, ao serviço de Sancho I, tomam Silves, cujo prelado, o .bispo Nicolau, é flamengo também. São ainda flamengos que em 1317, na quinta Cruzada
- Deus do vult!- facilitam a Afonso II a empresa de Alcácer. Mas a obra que as espadas começam é o arado que a acaba. Outro flamengo, Guilherme, deão da Sé de Silves, vai em pessoa buscar colonos aos campos brabantinos e às comunas da Flandres. O sangue da Bélgica transfunde-se nas veias do povo português. A flor da população começam a brotar os tipos ruivos de Atouguia e de Vila Verde, da Azambuja e da Lourinhã. Mais tarde, no meado do século XV, o movimento de migração flamenga atingirá os Açores (Terceira, S. Jorge, Faial), conduzido por Tiago de Bruges, por Josse de Hurter, por Guilherme vau der Haegen. Recuperada a terra, rejuvenescida a raça pela semente germânica, estabelecem-se relações políticas e económicas regulares entre os dois povos. Três alianças dinástica» são o seu principal instrumento: o casamento de Filipe da Alsácia, conde de Flandres, com a filha de Afonso Henriques - a «condessa Matilde» dos historiadores -, mulher superior cuja política se apoiou nas comunas e que fortificou a cidade do Gand; o de Joana de Constantinopla, filha do conde Bal-duíno de Flandres e do Hainaute, depois coroado imperador bizantino, com o infante Fernando ou Ferrand de Portugal, o bravo filho de Sancho I, que se bateu em Bouvines contra Filipe Augusto .pela liberdade do povo flamengo; o do duque de Borgonha, Filipe, o Bom, com a filha de D. João I, Isabel de Portugal, o «Tálamo do Tosão de Ouro», de que nasceu esse príncipe duro e - melancólico, enérgico e taciturno - Carlos, o Temerário -, tão português pelo tipo e pelo carácter, que encarnou o sonho da unidade e da independência belga «que morreu por ele, crivado de feridas e devorado pelos lobos, no campo de batalha de Nancy. Estava paga a dívida heróica de Lisboa, de Alcácer e - de Silves. Entretanto, sob a protecção dos príncipes, a economia das duas nações prosperava; assinava-se,