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214 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 74

fixar em mapa, a que o tempo ainda não roubou valor, a fisionomia da ilha de S. Tomé; a exactidão com que trabalhou e a existência providencial de um ilhéu permitiram-lhe trazer, nesses anos recuados, contribuição valiosa para a ciência, de grande repercussão no estrangeiro ; é quando no ilhéu das Rolas e através de cálculos minuciosos determina a passagem «exacta» do equador.
Ali está um marco, a meio de pequena ladeira que leva a formosa cratera, a atestar tão delicado trabalho; ali também, em tarde de gravaria, com o seu mapa desdobrado nos joelhos, tendo no horizonte a imensidão do Atlântico Sul, que tantas vezes cruzou, sentindo no rosto a candura do alísio, pensei em Gago Coutinho e na grandeza da sua alma - capaz de feitos de grande arrojo era também herói nas coisas aparentemente pequenas, mas de grande significado cientifico: um mapa que se desenha a rigor, uma determinação astronómica, um sextante que se adapta à navegação aérea, etc.
Perdura ainda na memória da gente de S. Tomé o homem afável, obcecado pelo trabalho, recto no tratamento, mas, sobretudo, a sua enorme simplicidade e a extrema amorabilidade pela natureza é o que mais acorda à lembrança. Para quem o conheceu, era como um português antigo, sobrevivência ou relíquia de um mundo desaparecido...
Morreu o último geógrafo das viagens de redescobrimento de sertões e desapareceu o navegador, o último dos Bartolomeus Dias! Morre tão modesto como grandiosa foi a sua vida. Receio até que com o desaparecimento de Gago Coutinho, símbolo de grandeza moral que os tempos vão conspurcando, se quebre o derradeiro liame que recordava à Nação que os homens são grandes quando são simples. Indo para o túmulo com o seu velho . fato de caqui que o acompanhou nas peregrinações de «campo», Gago Coutinho ofereceu a todos, uma vez mais, essa nobre lição; que nestes tempos tão enroupados de pedantismo isto seja aviso salutar.
Para a gente de S. Tomé, que assim o conheceu vestido, é como se na hora final Gago Coutinho lhes acenasse um adeus que, embora distante, era o adeus de um amigo.
Acenemos nós agora, os de S. Tomé, um adens de saudade ao «geógrafo africano».
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem !
O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. José Saraiva: - Sr. Presidente: vi, esta manhã, baixarem à sepultura os despojos mortais daquele que mereceu, em vida, ser chamado o último nauta, o lídimo expoente do génio português no que ele tem de mais alto, heróico e universal, o símbolo das virtudes nacionais, ou, numa palavra breve que lapidarmente tudo isso exprime, o último herói lusíada.
Já a Assembleia Nacional, primeiro em sessão que ficou profundamente gravada na memória de todos nós e agora nas palavras que acabamos de escutar, prestou ao almirante Gago Coutinho as mais eloquentes homenagens que a algum português tem tributado. Recordo as três notabilíssimas orações que, do alto daquela tribuna, há um ano foram proferidas; e penso que agora não haveria mais que acrescentar uma palavra de luto, melhor que uma palavra, um respeitoso silêncio de luto, de um luto que os representantes da Nação neste momento sentem em uníssono com a Nação inteira.
Sinto-o. E, todavia, uma imposição da consciência me arrasta a erguer hoje a minha voz, neste lugar. Poderia dizer: um motivo pessoal, uma velha divida a saldar. E se me atrevo a falar dela, é porque penso que milhares de portugueses partilham comigo essa divida imprescritível, e que as palavras que trago para dizer, por sobre serem minhas, são as palavras de toda uma geração.
Eu estava ainda no balbuciar do tempo infantil quando o feito que imortalizou os aviadores portugueses fez soar, por sobre todas as fronteiras do mundo, o nome de Portugal.
Hora a hora, a viagem foi seguida ansiosamente pelas multidões de uma e outra margem do Atlântico. Pelas multidões e também pelas famílias recolhidas nos seus lares. Longínqua, velada pela neblina das reminiscências do tempo em que mal se desperta para a vida exterior, é a recordação que desses dias, na perspectiva do tempo vivido, se conserva ainda.
Há, no entanto, uma recordação que nitidamente se recorta na distância, uma experiência pessoal quê ficou em mim gravada para sempre: foi naquele dia em que chegou a noticia triunfal, recebida nas ruas e nos lares com estremecimentos de indizível júbilo, foi nesse dia que .me foi dado sentir, pela vez primeira, o orgulho de ser português.
O feito glorioso de 1922, para além do que em si mesmo foi, só pode ser entendido na sua verdadeira dimensão se for olhado na repercussão que teve sobre a alma nacional. Para a minha geração ele foi isso: a revelação, feita na madrugada da vida, de que o génio da Pátria permanecia vivo, de que, na grande cadeia de gerações que nós somos, o martelo da história vai sempre forjando, em cada novo século, novos elos de heroísmo.
Para as gerações que já então tinham entrado na vida, foi talvez lição mais necessária e, se pode ser, mais bela ainda: a de que nem tudo em sua volta eram destroços, remorsos, despojos de uma glória finda, e de que nas reservas mais fundas do génio nacional permanecia intacto o valor que podia sempre transmudar o crepúsculo na clara manhã da ressurreição portuguesa. O Almirante das Estrelas do Sul fui, para muitos portugueses ansiosos, a estrela de alva a anunciar, no céu nocturno, que um dia novo já não podia tardar.
As nações, de tempo a tempo, encarnam o próprio génio em filhos seus. São eles os intérpretes e os testemunhos do que o espirito das pátrias tem de mais próprio e de mais fundo, da mensagem original que cada povo tem por vocação de afirmar no inundo.
Foi destino de Gago Coutinho percorrer - nos mesmas condições de desconforto e dureza em que o fizeram os grandes exploradores sobre cujos passos- o Império se levanta- os ignorados caminhos das províncias da África e da Ásia; foram-se-lhe anos de vida a enfunar velas aos mesmos ventos que outrora levaram os descobridores, tisnando-se aos mesmos sóis, sentindo no rosto a espuma das mesmas ondas, buscando-lhes o heróico trilho sob as mesmas estrelas e sobre os mesmos mares; foi-se-lhe a vida inteira navegando, voando, estudando, marcando o risco das fronteiras onde Portugal começa, descobrindo os meios de conquistar o céu como nossos maiores descobriram forma de conquistar os mares ...

m todos os seu feitos parece nimbá-lo a própria alma dos heróis antigos. Tal como os navegadores de Quinhentos, cujas viagens se não fizeram indo a acertar, nunca o seduziu ò gratuito gosto da aventura: ele sabia que o demorado estudo, a meditação e o saber eram o único alicerce perdurável dos empreendimentos humanos, e que a audácia só é criadora e fecunda quando a inteligência a ilumina.
Em todos os momentos da sua vida, procedeu generosamente, desinteressadamente. A glória poderia tê-lo facilmente alcandorado aos púlpitos dá política ou aos tronos dourados da riqueza: ele era grande de mais para aspirar a tão pouco. Nada quis para si: cuidou sempre de dar, esquecido de receber. Assim também foi Portugal, terra mater de quatro impérios, nação pobre que