1014 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 123
Ponho de lado, Sr. Presidente, a alteração referente à constituição da Assembleia Nacional, que aparece na proposta e em dois projectos, bem como as alterações respeitantes à forma de eleição dos Deputados e à duração da legislatura, que se preconizam num dos aludidos projectos. São talvez questões irrelevantes para a generalidade do debate e que facilmente terão o comentário devido no decurso da discussão na especialidade.
Ponho igualmente de lado, reservando-a para idêntica oportunidade, a maior duração da sessão legislativa, constante de outro projecto - embora esta questão coubesse perfeitamente, por a ele me parecer de certo modo ligado, no problema do aumento dos poderes da Assembleia Nacional, de que me ocuparei em seguida.
O reforço de tais poderes vem consignado em três dos projectos e merece, sem sombra de dúvida, um apontamento especial na generalidade do debate.
Que noção temos nós de Assembleia Nacional?
A resposta a esta pergunta é indispensável para se tomar posição no problema.
E a Assembleia Nacional, sem embargo da sua função fiscalizadora, o órgão legislativo, de tal modo que não só a função legislativa tenha de estar no âmbito da sua competência, mas deva reservar-se-lhe o essencial da função de legislar?
Estaremos, mais do que paredes meias com a doutrina do regime de assembleia, dentro do próprio terreno dos sistemas parlamentares.
Diversamente, é a Assembleia Nacional, sem embargo da sua função legislativa, órgão predominantemente fiscalizador ?
Manter-nos-emos rigorosamente fiéis aos nossos princípios e à ética das nossas instituições, isentos da ameaça de escleroses ideológicas ou de germes de desagregações doutrinárias.
O Sr. Carlos Lima: - Para já, isso, o que V. Ex.ª acaba de afirmar -empregando uma expressão de V. Ex.ª, usada relativamente ao Deputado Sr. Dr. José Saraiva- é literatura. O que se torna necessário são factos e argumentos concretos.
O Orador: - Literatura ou doutrina, por agora. Ficará para mais adiante a demonstração, o apontar do exemplo concreto. Creio, Sr. Presidente, que o pensamento acabado de expor deve estar bem presente no calendário das nossas meditações - não vá rondar-nos o perigo de ficarmos elementos marginais da vida do regime ou autófagos do nosso organismo político. Ceder a tal perigo seria não cuidar de que a alma continue ligada ao corpo das instituições e tornarmo-nos, por mais que em palavras teimássemos dizer o contrário, refazedores do demo-liberalismo, uns perfeitos parlamentaristas retrouvés.
Ora: não só me parece evidente que alguns dos novos poderes que se pretendem atribuir à Assembleia Nacional levam facilmente ao sistema da omnipotência parlamentar, permitindo a organização do processo de a Câmara dominar o Governo, como me quis parecer que o substrato ideológico apresentado para suporte doutrinário de tais poderes melhor quadraria ao que um talentoso jornalista político, em livro recente, denominou a «república dos deputados».
Reflictamos, por exemplo, na voz perigosa de um dos próceres dos aludidos novos poderes.
Refiro-me ao ilustre Deputado Sr. Dr. Carlos Lima, e chamo-lhe voz perigosa pela sedução da rara vivacidade intelectual com que sabe conduzi-la e do extraordinário dom de simpatia humana com que naturalmente a profere.
S. Exa. aceita que as assembleias, c mesmo quando em condições de poderem concretizar todas as suas potencialidades de acção em termos de funcionarem em pleno rendimento, não podem fazer face às múltiplas e prementes exigência» legislativas de uma época cujas infra-estruturas sociais são imensamente complexas e caracterizadas por uma perturbadora mobilidade». S. Ex.ª aceita que elas, «menos em contacto com o conjunto das necessidades de administração pública, nem sempre tomam com presteza e oportunidade as iniciativas legislativas desejáveis». S. Ex.ª aceita, que elas «não raro» adoptam «na apreciação dos assuntos uma ordem de trabalhos menos ajustada e consentânea com as exigências do interesse público». S. Ex.ª aceita que muitas vezes não é «possível ou fácil submeter às assembleias os textos já elaborados relativos a matérias sobre que se impunha legislar». S. Ex.ª aceita que a «complexidade de certos assuntos» torna «arriscada a fixação de preceitos legais rígidos e demasiado regulamentados B, o que dificulta «o devido ajustamento e adequação das soluções de pormenor». S. Ex.ª aceita que elas fazem «verdadeiras guerrilhas de emendas às propostas governamentais», que não raro as desnaturam e desvirtuam nos seus objectivos. S. Ex.ª aceita que elas nem sempre têm «na devida conta os aspectos técnicos das matérias objecto de discussão» e que «normalmente os Governos adoptam as soluções legislativas mais indicadas e adequadas ao condicionalismo social e às exigências de cada momento». S. Ex.ª aceita que elas descambam cem exageros oratórios e dialécticos, não aprovando com a necessária rapidez e diligência certas leis fundamentais». S. Ex.ª aceita que «realmente» elas se revelam «lentas, pouco eficientes e desorganizadas no seu trabalho» e que «estes defeitos» são, «por assim dizer, originários« (o sublinhado é meu).
Quer-se objurgatória mais viva ou processo condenatório mais bem conduzido contra os regimes parlamentares?!
Assim parece, efectivamente; mas deve tratar-se de puro engano.
O Sr. Carlos Lima: - Aceito, é claro, ter afirmado tudo isso como defeitos que se apontam às assembleias; apenas, entendo que também não é maneira de resolver o problema, desde que se parte do princípio de que devem existir as assembleias, atribuir-lhes poderes sem consistência. E se citei todas essas apontadas deficiências das assembleias foi precisamente para frisar, como frisei, que têm sido, e podem ser, adoptadas várias soluções correctivas desses defeitos sem ir ao extremo de pôr em causa a própria subsistência das assembleias.
Mas V. Ex.ª tira conclusões, ou vai insinuando conclusões, que não correspondem ao meu pensamento nem aqui exprimi. Ora, a questão aqui tem de ser posta a claro mais uma vez. E permito-me chamar, desde já, a atenção de V. Ex.ª para o facto de no essencial do meu projecto se conterem soluções que, ou já estiveram consagradas na nossa Constituição, ou foram já defendidas por pessoas responsáveis da Situação. Portanto, na medida em que V. Ex.ª ataca o meu projecto de conduzir à omnipotência da Assembleia e a outras coisas, ataca verdadeiramente a Constituição e essas pessoas responsáveis. Isto quanto ao primeiro aspecto.
O Orador: - Quanto à Constituição, estou de acordo relativamente a algumas das soluções preconizadas por V. Ex.ª, mas isso só mostra que, inversamente ao aqui dito, houve ainda alguma timidez, porventura compreensível de momento, na reacção contra o «passado»