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1986 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 79

riores que administrar, e muito especialmente com vizinhos poderosos, não obstante isto se organizar debaixo da forma democrática, pode contar com a perda infalível da sua independência, ou, por outras palavras, da sua existência como nação».
Chegara o momento em que el-rei pôde compreender que, para mantermos o nosso domínio ultramarino e para estarmos à altura do prestígio internacional adquirido, era indispensável promover a sanidade da nossa política interna, uma sábia reforma de costumes, uma revisão profunda dos nossos hábitos políticos. A anarquia mental a que o sistema e os males que de longe vêm nos conduziram exigia uma profilaxia decisiva e eficiente.
Quando el-rei confiou o poder a João Franco, o homem puro que trouxe ao País uma revoada de esperança, nessa altura jogou aberta, directamente contra o interesse partidário, a favor do interesse nacional: «para bem do País», segundo a sua própria expressão.
Por via da intoxicação colectiva dominante não seria compreendido o alcance altamente patriótico de tal experiência. E por isso haveria de ruir desfeita em sangue a tentativa de ressurgimento nacional. Um grande sonho fora abatido.
Com el-rei morreu também, moço e esperançoso, o príncipe real D. Luís Filipe. Tão grande é, porém, a figura de D. Carlos, tão rica e majestosa, tão impressionante e avassaladora, que tem contribuído para que a figura do príncipe seja muitas vezes relegada para plano secundaríssimo. E, no entanto, o príncipe real era mais do que uma promessa ou esperança cativante e sugestiva, quer pelas suas qualidades, já então reveladas, quer mesmo por inestimáveis serviços prestados à Nação.
Um intelectual e investigador de primeira água já um dia se entreteve a idealizar o que teria sido o reinado de D. Luís II, se as balas assassinas o não tivessem feito tombar nesse dia fatídico de Fevereiro de 1908. Adoptou, para tal, o método da ucronia, que Jacques Bainville tanto gostava de invocar para devanear às vezes sobre a história que «devia ser» e que, por isto ou aquilo, «não chegou a ser».
«Aqui o tens ... faze dele um homem e lembra-te de que há-de ser rei...» - foram palavras de D. Carlos para Mouzinho de Albuquerque ao entregar-lhe a educação do príncipe. E também estas, admiráveis de austeridade e de humildade privilegiada: «Tenho grandes imperfeições como homem e como rei. Os meus defeitos procedem de duas causas: primeira, a hereditariedade na gestação do meu ser; segunda, a influência do meio em que nasci e me criei. Considero como primeiro dos meus deveres de pai eliminar ou, quando menos, restringir, por meio da educação mais atenta e escrupulosa, no temperamento, no carácter e na inteligência dos meus filhos, a intervenção dos elementos que actuaram na minha tão imperfeita compleição».
Meses antes da sua morte violenta já o príncipe havia prestado ao País serviço de largo alcance: refiro-me à viagem de soberania que efectuou às províncias portuguesas de África na companhia de Aires de Orneias, então Ministro da Marinha e Ultramar.
A rainha D. Amélia confessaria mais tarde, muitos anos depois, em carta a Aires de Orneias: «Sim, tanto tinha desejado essa viagem do príncipe, e outra ou antes esta, estendendo-se a todas as colónias, tinha eu sonhado quase vinte anos antes, mas realizada pelo então príncipe D. Carlos e eu».
A viagem teve início no dia primeiro de Julho de 1907, com o embarque em Lisboa. O navio, o África, era comandado por Guilherme Augusto Vidal.
Chegaram a S. Tomé no dia 12 de Julho, a Luanda em 17, a Lourenço Marques em 29. No regresso estiveram novamente em Angola, depois de visitarem a África do Sul, seguindo para Santiago e S. Vicente. O desembarque em Lisboa foi a 28 de Setembro.
O comandante do África conta que «a vida do príncipe real a bordo foi durante toda a viagem a mais franca possível, sem cerimónias ou etiquetas, encantando e mantendo relações com todos os passageiros».
Mais: «Convidava diariamente dois passageiros para jantar em sua companhia, tendo tido o cuidado de principiar esses convites pelos primeiros a desembarcar nos portos de escala de viagem, e de forma a todos contentar em geral nessa sua franca e sincera gentileza».
As qualidades pessoais do príncipe contribuíram para que essa viagem fosse um êxito. Dizia, nessa mesma altura, Aires de Ornelas em carta a sua mulher: «O seu ar, a sua amabilidade com toda a gente, o interesse que toma por tudo, o tacto com que sempre tem falado, operam naturalmente e vão transformando em aclamações e saudações especiais o que a principio se dirigia à personagem oficial que se não conhecia».
Em Lourenço Marques, a parada indígena foi um acontecimento memorável. Mais de 17 000 indígenas desfilaram na mais perfeita ordem diante da tribuna real, com a bandeira portuguesa à frente, e durante duas horas manifestaram o seu entusiasmo. Foi surpreendente aos olhos de todos, e mais ainda dos estrangeiros presentes, que toda essa gente indígena, armada em guerra, fosse mantida em ordem apenas por 3 brancos a cavalo e uns 60 sipaios! Aires de Orneias comenta: «Ninguém senão nós podia então em África apresentar tamanha demonstração de influência ...»
Pois bem: a imprensa metropolitana do tempo procurou reduzir o significado de tal cerimónia às proporções de um batuque de pretos bêbados ...! Execrável panorama o da vida política do tempo! Não haviam pretendido, igualmente, apoucar o herói de Chaimite, diminuí-lo, achincalhá-lo, no ódio invencível do reles a tudo o que sobressaia e atinja cumes de beleza ou de grandeza?
O príncipe recebeu aclamação apoteótica do Portugal africano; coroou uma obra notável de ocupação e administração ultramarinas; selou com a sua presença a união entre essas parcelas e a metrópole; realizou uma viagem de soberania do mais largo alcance naquela época e na hora ultramarina que decorria. Depois de tudo isso, depois da apoteose no ultramar, quando desembarcou em Lisboa e se dirigiu para a cerimónia de recepção na Sala do Risco, teve o desgosto, ele e a gente boa e esclarecida, sentiram todos a náusea de ver que, na metrópole, os partidos se haviam concertado para diminuir a cerimónia, no intuito de negarem à viagem o efeito e o patriótico alcance que teve realmente! Poucos meses depois era a tragédia do Terreiro do Paço ...
Brito Camacho havia definido, em editorial de A Luta, o programa de desmoronamento: «Quanto mais liberdade nos derem mais havemos de pedir, obrigando-os às transigências que rebaixam ou às violências que comprometem». O sangue de dois justos haveria de ser o epílogo de uma época de desvairamento, do longo processo de aviltamento da opinião popular. Há versos de Junqueiro nas balas dos regicidas; unhadas de Fialho a fazerem sangrar os corpos mutilados; há sarcasmos de intelectuais dementados e vilezas de políticos sem carácter naquele sangue que tinge o empedramento da rua e salpica duramente uma geração transviada. «O grande rei» - como lhe chamaria Salazar -, o grande rei tombara. O caçador Simão fizera caça. Há-de vir, depois, a expressiva e longa romagem dos contritos: António Sardinha, Alfredo