DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 146 2678
Decorreram cem anos sobre o nascimento de Camilo Pessanha, em Setembro de 1867. Decorreram quarenta e dois anos sobre a sua morte, ocorrida em Macau no ano de 1926.
Ninguém o esqueceu. Todos o exaltam. À sua obra - o pequeno livro da Clepsidra, publicado a primeira vez em 1920- foi já por várias vezes reeditada e, pela dedicação desinteressada e isolada de alguns estudiosos, acrescida de inéditos e variantes.
Mas a edição definitiva, completa e crítica da poesia de Camilo Pessanha continua ainda por fazer.
Em 1955 escrevia, a rematar um trabalho dedicado ao poeta, o Dr. Dias Miguel, um dos seus mais dedicados estudiosos e admiradores:
Aqui formulamos de novo o desejo de que em 1967, na celebração do 100.° aniversário do nascimento do poeta, se possa publicar a edição crítica definitiva, de que está urgentemente necessitado quem, pela sua presença viva em duas gerações dos nossos maiores líricos, tem uma importância particularmente significativa na história da poesia portuguesa.
Apesar da urgência, passaram mais de dez anos. Chegou o ano do centenário e os inéditos continuam inéditos e as variantes continuam dispersas por revistas e jornais esquecidos ou, quando muito, recolhidas em páginas de investigação de tiragem limitada, público restrito e difícil acesso.
Ora a sorte da poesia de Camilo Pessanha - sem dúvida lamentável só por si- é afinal uma fatalidade a que parecem condenados todos ou quase todos os textos fundamentais da nossa literatura.
A maior parte desses textos, com efeito, não possui uma edição, já não diremos diplomática ou crítica, mas uma edição decente, que nos permita lê-los sem esforço de fio a pavio, sem recorrer a manuscritos, que são tesouros quase intangíveis, ou a velhas impressões defeituosas e corrompidas, sempre raras, jazendo no pó dos "reservados" ou, pelo menos, arrumadas nas prateleiras das bibliotecas, donde, naturalmente, só saem para consulta in loco, sujeita a um horário parco e rígido, que mal se adapta às necessidades do longo estudo e comentário.
As crónicas de Fernão Lopes, que me dispenso de adjectivar, porque todos sabem que lugar ocupam na nossa historiografia e na nossa arte de escrever, aguardam ainda uma edição crítica e, mesmo nas edições vulgares, suo hoje quase impossíveis de adquirir.
Camões - até o indiscutível e monumental Camões - não mereceu até agora a elementar justiça de uma edição nacional, apurada e condigna, das suas obras completas. À escassos quatro anos do 4.° centenário da primeira edição de Os Lusíadas já não seria talvez cedo para se começar a pensar nisso . . .
Vozes: -Muito bem I
A Oradora: - Gil Vicente, cujo centenário celebrámos não há muito, é dos mais desprotegidos da sorte. A não ser na edição fac-similada da Copilaçam de 1562 ou em raros opúsculos soltos, os seus textos correm mal impressos e mal anotados.
A única edição hoje acessível e corrente de que dispõem para o teatro completo os seus admiradores - e há-os em número considerável, nacionais e estrangeiros, simples amadores de boa literatura ou profissionais da investigação literária - é uma edição incompleta, de texto mal fixado e mal revisto, paupérrima no comentário.
Falo dos grandes nomes, das glórias nacionais absolutas - mas que dizer da multidão de obras de mérito de outros autores, não menos importantes para o estudo das formas e do gosto literário, da língua e dos costumes?
Lamentável é dizê-lo. Na sua maioria, os que não jazem ainda em edições carcomidas e quase ilegíveis de século XVII ou XVIII devem-no à actividade e à devoção de investigadores estrangeiros.
O brasileiro Augusto Magne, para a prosa medieval; o francês Bévah, editor escrupuloso e erudito de algumas obras avulsas de Gil Vicente; o alemão Priebsch, que organizou a única edição moderna de Andrade Caminha; o espanhol Eugênio Asensio, que amorosamente preparou a edição crítica da Eufrosina, a única das comédias de Jorge Ferreira de Vasconcelos que viu a luz da publicidade reste século - são alguns desses estrangeiros que, para nossa vergonha, fizeram, por puro amor às letras, o que nós não soubemos fazer, nem por amor às letras nem por respeito à cultura a que teoricamente pertencemos e de que mais teoricamente ainda nos orgulhamos. Ainda há pouco me chegou a notícia de que está finalmente em preparação a edição crítica das obras de outro gigante da prosa portuguesa, o padre António Vieira: devemos agradecê-la, humilhados e contritos, ao esforço do Prof. Flash - outro alemão que vai, naturalmente, publicá-la na Alemanha.
E, já que estamos em maré de centenários, uma nota mais, pitoresca e dolorosa. Em 1966 completaram-se, num silêncio de- superior indiferença, trezentos anos sobre a morte de D. Francisco Manuel de Melo - um nome de projecção europeia que honra a cultura portuguesa seiscentista. Pois bem, que eu saiba, o único estudo dedicado com palavras de alto apreço ao autor de Apólogos Dialogais no seu centenário foi uma dissertação de licenciatura, do holandês Teensma.
Está por editar há mais de duzentos- anos a colectânea chamada Fénix Renascida, que é o mais importante documento da arte- poética do nosso século XVII e fonte copiosa de informações sobre os costumes, o gosto, as ideias morais, políticas e religiosas de então . . . E para exemplo basta.
O que se diz de edições poderia dizer-se de estudos críticos, ensaios de análise e interpretação, comentários, glossários e todas as obras que têm a função de esclarecer e aplanar o caminho aos leitores de textos clássicos. O panorama é desolador quando se pretende organizar a bibliografia crítica da maioria das obras dos autores portugueses.
E, no entanto, três Faculdades de Letras formam anualmente em Portugal algumas dezenas de virtuais investigadores literários.
O que impede então que os textos da nossa literatura apareçam e circulem em impressões limpas de erros, baseadas em fecundos cotejos, enriquecidas de comentários pertinentes e esclarecedores?
Não valeria talvez a pena levantar a questão se na sua origem estivesse uma incurável inaptidão dos Portugueses para os estudos literários, uma fatal negação ao trabalho aturado e sistemático pressuposto pela tarefa de editar ou explicar um texto clássico.
Mas, sabido que não faltam entre nós vocações para este género de actividades, deduz-se que a falha é de uma organização que fomente e apoie a realização cabal dessas vocações.
Em primeiro lugar, devemos reconhecê-lo, reeditar condignamente um autor clássico é empresa onerosa e pouco compensadora do ponto de vista comercial. Não pode levar-se a mal que as casas editoras, que, por mais dedicadas ao prestígio da cultura nacional, são, antes de tudo, empresas comerciais, não tomem sobre si o pesado encargo de organizar e executar um programa sistemático