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9 DE MARÇO DE 1968 2679

de boas edições críticas - publicações caras e sempre pouco vendáveis, destinadas, como são, a um público restrito.

Não ignoramos que o Estado não pode, nem deve., em muitos casos, sobrepor-se à actividade privada, concorrendo deslealmente com ela, de modo a sufocá-la . . . Mas onde essa actividade não pode ou não quer chegar tem de intervir o Estado, e com dobrada razão sempre que se trate de salvaguardar, prestigiar e divulgar o património cultural da Nação.

Vozes: - Muito bem l

A Oradora: - Nem outra origem têm, por exemplo, as edições nacionais que em toda a parte se fazem, a expensas dos Estados, daquelas obras que são monumentos inalienáveis e sagrados das literaturas pátrias. Dante, Shakespeare, Goethe, Cervantes. Camões, são monumentos nacionais, tanto como as velhas igrejas e castelos. E que diríamos de um Estado moderno que se desinteressasse da conservação, do restauro e até da valorização turística das suas obras de arte arquitectónica e que deixasse ao arbítrio de particulares mais ou menos aptos, mais ou menos conscientes, a tarefa de garantir a permanência e a grandeza desses testemunhos do passado?

Não faltam em Portugal as estruturas oficialmente competentes para o desempenho da missão a que aludimos - um Instituto de Alta Cultura, uma Academia das Ciências, Faculdades de Letras, institutos de língua e literatura funcionando (ou devendo funcionar) no seio dessas Faculdades.

Deles deve partir o impulso para uma obra que, infelizmente, se não constrói apenas com boas vontades, vocações decididas a obscuras devoções desinteressadas . . .

O primeiro passo para a realização desta tarefa consistiria em dotar e apetrechar convenientemente os institutos criados pela última reforma das Faculdades de Letras.

Todos nós, escolares de humanidades, vimos com alegria e esperança a abertura dessas instituições, que prometiam ser fecundo seminário de investigadores no domínio tão desprezado dos nossos interesses. Mas vão volvidos mais de dez anos sobre essa reforma e essa inovação. E pelo menos os Institutos da Faculdade de Letras de Lisboa afectos ao sector literário - e são os que conheço bem -, o Instituto de Filologia Portuguesa, o de Estudos Italianos, o de Estudos Franceses, o de Estudos Espanhóis, o de Estudos Brasileiros, ou não têm vida própria, reduzidos a paredes nuas, a estantes desertas, a ficheiros sem fichas, ou funcionam, os das culturas estrangeiras, graças a munificência das instituições culturais dos países interessados em fomentar entre nós o estudo das respectivas línguas e literaturas. Criaram-se os institutos, mas não se lhes deu verba nem para um clips, nem para uma ficha, nem, muito menos, claro, para manter um funcionário que assegure a burocracia mínima indispensável. De maneira que há situações absurdas e anómalas - professores catedráticos a fazer escolha de livros e catalogação gratuita nos escassos ócios do ensino; alunos a quem se pede uma permanência voluntária que permita ter a porta aberta e assegurar aos outros estudantes a consulta dos livros oferecidos pelo Instituto Italiano de Cultura em Portugal, ou pelo Instituto Francês, ou pela Embaixada de Espanha, ou pela Fundação Gulbenkian, e arrumados em estantes que ninguém é obrigado a limpar e registados em fichas que se compraram quase por subscrição . . .

E a possibilidade de intercâmbio de publicações, que é um dos aspectos mais fecundos e positivos de instituições deste género, morta & nascença pela ausência forçosa de revistas ou cadernos que, sendo órgãos dos institutos portugueses, deveriam assegurar a permuta com instituições congéneres estrangeiras . . .

Se esses institutos, nomeadamente o de Filologia Portuguesa, entrassem a funcionar regular e intensamente e se, como seria normal, dispusessem de uma verba que lhes permitisse empreender estudos e investigações conducentes a fixação de textos, ao seu comentário e à sua análise sistemática-teríamos, finalmente, construída uma infra-estrutura indispensável à obra que se impõe de aturado restauro e ampla divulgação da nossa literatura, ao mesmo tempo que veríamos criados verdadeiros seminários de investigação literária, donde sairiam já com experiência e orientação segura os obreiros dessa empresa. E, diga-se entre parênteses, iríamos assim ao encontro das aspirações do melhor de uma juventude académica sempre inquieta e ansiosa por experimentar as suas forças . . .

O segundo passo, e não menos decisivo, seria o de remunerar convenientemente a actividade do investigador literário, que assim deixaria de ser luxo dos ociosos de bom gosto ou paixão contrariada e tempestuosa que rouba o sono, e às vezes o pão, a quem, para ganhar a sua vida, tem de trabalhar em tudo menos naquilo para que nasceu fadado . . .

Vozes: - Muito bem!

A Oradora: - Não ignoro que o III Plano de Fomento encara finalmente esta necessidade de remunerar o trabalho do investigador. Só faço votos para que a preocupação dominante do progresso técnico e da rentabilidade económica não venha obnubilar, na prática, a visão dos responsáveis; nem só de pão vive o homem, mas também do verbo . . . Ora os trabalhadores das letras são servidores do verbo, que mantêm acesa a chama de uma cultura - o ideal de espírito, de verdade e de beleza, sem o qual não valeria a pena viverem os homens, nem teriam as nações razão de subsistir.

Estimulado nas Faculdades de Letras o interesse e o amor pela investigação, remunerados condignamente os obreiros dela, só restaria ao Estado, ou sob a forma de comparticipações às editoras idóneas, ou directamente através dos seus órgãos competentes, traçar e realizar um amplo e seguro programa de edições que salvassem a nossa literatura do olvido, da poeira, das traças e da nociva acção de editores venais e comentadores ineptos.

Vozes: - Muito bem!

A Oradora: - Sr. Presidente: A memória de Camilo Pessanha que me perdoe se a propósito do seu centenário falei de coisas que não lhe dizem respeito.

Mas afinal é talvez a melhor homenagem que podemos prestar aos nossos poetas esta ingrata denúncia da indiferença que os insulta.

No princípio deste século, o Prof. Mendes dos Remédios lançava já um brado de alerta, verberando no prefácio da sua Historia da Literatura Portuguesa o abandono a que via votados os monumentos da nossa literatura. E afirmava que o Governo ou o Ministro capaz de chamar sobre si a missão de divulgar, restituídos à sua pureza, os nossos textos clássicos, teria bem-merecido da Pátria.

Cinquenta anos - depois não haverá ninguém que aceite o desafio?

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

A oradora foi - muito cumprimentada.