2754 I SÉRIE-NÚMERO 85
produza maior delinquência do que a que combate na lei penal.
Aplausos do PCP, de Os Verdes e do Deputado independente Mário Tomé.
Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Ferraz de Abreu.
O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: 1. Propõe-se o Governo, com a aprovação da proposta de lei n.º 92/VI, obter a indispensável legitimidade constitucional para proceder a uma reforma do Código Penal. Uma reforma que, à vista do texto junto - correspondente ao articulado do futuro Código -, se adivinha profunda e significativa. E que se projecta numa pletora, quase incontável, de alterações da codificação vigente. Pelo seu número, não é, naturalmente, possível recensear, referenciar, enquadrar e valorar criticamente todas essas propostas.
Nada também menos adequado, neste espaço e neste processo, do que a tentativa de fazer valer aqui construções teóricas capazes de emprestar racionalidade dogmática ao universo das propostas em exame.
Tal tarefa, por certo mais consentânea com uma academia de direito do que com um fórum político, já foi, de resto, em boa medida, empreendida e lograda nos aturados e profícuos debates que ocorreram em sede de colóquios organizados nesta Casa, bem como nas numerosas e sucessivas reuniões operadas no seio da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
Julgo não andar errado se acreditar que o que aqui se nos pede, - coram senatum, reunido em Plenário, que o mesmo é dizer coram populum, onde poucos, por certo, serão especialistas de direito criminal, mas todos são, seguramente, representantes e intérpretes credenciados das aspirações, das valorações e das reivindicações do povo português em matéria de luta contra o crime -, o que aqui se nos pede, dizia eu, é, seguramente, coisa diferente: é o discurso de enquadramento e de legitimação política do Código Penal em revisão. Uma legitimação que há-de sindicar-se a partir de uma série complexa e integrada de perspectivas e exigências, das quais devem destacar-se quatro.
Em primeiro lugar, há que questionar-se a fidelidade do Código à tradição e às representações culturais do povo português, em matéria de direito criminal. Nada, naturalmente, mais adquirido e mais pacífico de que o direito é um produto cultural e, portanto, uma segregação cultural dos povos. Tudo está em saber se, com este diploma, os representantes do povo se afastam ou não das mundivisões do povo português. Uma consideração que é tanto mais oportuna quanto é certo que, a meu ver, infundada e erradamente, se vem falando de uma revolução copernicana no sentido do referente nacional.
Em segundo lugar, há-de questionar-se o respeito pelos procedimentos constitucionalmente previstos para elaborar a legislação em matéria criminal.
Em terceiro lugar, há-de sindicar-se a consonância das soluções previstas com a constelação de valores jurídico-constitucionais da nossa lei fundamental.
Por último, há-de averiguar-se a idoneidade da bateria de soluções, do ponto de vista das metas e dos programas que nos propomos, em sede de política criminal, isto é, de prevenção do crime.
2. Ora, vistas as coisas com o rigor e a ponderação necessários, é nossa convicção, Deputados do PSD, que o texto em exame passa praticamente incólume o mais rigoroso exame à luz destes critérios. E responde afirmativamente a todas as exigências de política criminal emergentes destes mesmos critérios. É o que nos propomos demonstrar, de forma necessariamente apressada e sincopada.
Em primeiro lugar e significativamente, a proposta de revisão deixa intactos os primeiros 40 artigos do Código em vigor. Isto é, não altera a construção dogmática da infracção criminal, aquilo a que, com propriedade, se vai já chamando a gramática dogmática, intersubjectivamente estabilizada pelas últimas gerações de juristas portugueses. Aqueles que, na diversidade das suas funções, como magistrados, agentes das polícias criminais, advogados, etc., têm sobre os seus ombros o ónus e a honra de protagonizar o sistema de justiça penal portuguesa. Todos eles, de uma forma ou de outra, alunos das duas grandes escolas de direito penal portuguesas, sob o magistério de Cavaleiro Ferreira e Eduardo Correia, fizeram sua e interiorizaram esta gramática dogmática da construção da infracção criminal. Por isso, nada mais aconselhável do que deixá-la intocada. Até porque os desenvolvimentos doutrinais e jurisprudenciais, entretanto ocorridos, tanto entre nós como no estrangeiro, não puseram em causa a pertinência, o rigor e o acerto dessas soluções.
Trata-se de uma dogmática, importa reconhecê-lo, com decisivos e manifestos momentos de comunicabilidade com a elaboração doutrinal de outros países, designadamente com a alemã, da qual recebeu o modelo fundamental de compreensão e sistematização categorial. O que não é o mesmo que afirmar a tal revolução copernicana, no sentido de que, já com o Código Penal de 1982, já com a reforma em curso, se assistiria a uma como que colonização do direito penal português pelo direito penal germânico.
E isto, por duas importantes ordens de razões.
Em primeiro lugar, por ser verdade que já o Código Penal de 1852-1886 era, a seu modo, uma cópia relativamente fiel do Code penal francês, de 1810, o conhecido Código Napoleónico. Não era, de resto, por acaso, que, nos escritórios dos mais qualificados advogados portugueses e mesmo nas bibliotecas dos nossos tribunais, avultavam, como instrumentos de trabalho privilegiados, os grandes tratadistas e comentadores franceses. Não há jurista formado e que tenha trabalhado com o velho Código Penal que não conheça Chauveau e Hélie, Garçon, Garraud, etc. Portanto, o decantado abandono do paradigma português é, de certo modo, o abandono do paradigma francês.
Por outro lado e sobretudo, nada mais apressado do que considerar que a relativa comunicabilidade categorial e sistemática entre o Código Penal português e o Código Penal alemão resulta em mimetismo, no sentido de que o Código Penal português tenha absorvido o mesmo conteúdo das soluções e dos conceitos, que, sob o mesmo nome, correm na experiência jurisprudencial e doutrinária alemãs. Temas tão importantes como o erro, a comparticipação, as causas de justificação, o concurso, a reincidência, etc., embora com os mesmos nomes, têm conteúdos significativamente diferentes dos que esses mesmos conceitos têm na literatura e na experiência jurisprudencial alemãs. Não será arriscado acreditar que no nosso Código Penal, apesar da aproximação categorial, a seiva que verdadeiramente corre é a que vem de Pascoal de Melo Freire, Levy Maria Jordão, Afonso Costa, Henriques da Silva, Beleza dos Santos, Eduardo Correia e Cavaleiro Ferreira. E se dúvidas subsistissem a este propósito, vejam-se os últimos tra-