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2672 I SÉRIE - NÚMERO 74

giada amizade com o primeiro grande líder do Moçambique Livre, o Presidente Samora Machel, de cujo Governo V. Ex.ª foi distinto Ministro dos Negócios Estrangeiros.
Nunca me hei-de esquecer que, quando visitei Moçambique para assistir à assinatura do «Acordo de Incomati», o Presidente Samora Machel, num jantar largamente participado com que me quis distinguir, que muito me honrou e a que assistimos ambos, imprevistamente me perguntou (era sempre imprevisível!) se eu sabia quem é que ia ser Presidente de Moçambique depois dele.
Respondi-lhe, naturalmente, que era questão que, de momento, se não colocava. Ripostou, porém: «Coloca-se sempre!». E como eu lhe dissesse que não fazia a menor ideia, saiu-se com esta: «É o Chissano!» Disse-lhe então que o considerava a si um brilhante e experimentado político, mas logo me desarmou, dizendo: «Não é nada disso! Vocês, europeus, não percebem nada de África! O Chissano (assim familiarmente lhe chamou!) vai substituir-me porque descende de reis e o poder em África é tradicionalmente monárquico!»
Fiquei surpreendido, como calcula, sobretudo sendo eu um indefectível republicano. Nem sabia que o meu caro Presidente pertencia à aristocracia africana (e espero que esta revelação não entre em choque com a sua condição de Presidente de uma República!) nem imaginava que pudesse ser esse o critério da preferência do Presidente Samora Machel.
A verdade é que ele foi premonitório. Quando assistíamos ao seu funeral, tive oportunidade de recordar este episódio. Dava que pensar. Mas após a prestação de V. Ex.ª como Chefe do Estado de Moçambique, concluo que não terá sido, ou não terá sido só por V. Ex.ª ser de boa cepa que o Presidente Machel o considerou então o mais capaz para ocupar o seu lugar. As razões terão sido seguramente outras e a que foi invocada por Samora Machel era, porém, a que lhe permitia ser, mais uma vez, o que tanto gostava de ser: original e imprevisível. O povo de Moçambique viria a sufragar largamente essa escolha premonitória.
Para este Parlamento, hoje é dia de festa. Poder receber o Presidente de um povo irmão - por laços de língua, de história e de sangue - é para nós motivo de júbilo.
Temos consciência do alto significado desta cerimónia. V. Ex.ª é, Sr. Presidente, apenas o quinto Chefe de Estado estrangeiro que nesta II República temos a honra de, neste Plenário, receber e ouvir. Como vê, não banalizamos as nossas homenagens nem os nossos sentimentos.
Aceite pois, Sr. Presidente, em toda a sua plenitude, o significado da nossa homenagem.
Moçambique não é apenas mais um país cujo Chefe de Estado nos visita. É um país que, por ficção política, foi durante séculos Portugal, mas que, no desenrolar do processo histórico, foi companheiro de aventura dos irrequietos portugueses no entrecruzar das civilizações.
Essa aventura saldou-se por grandezas e misérias, amizades e desforços, mas nunca de indiferença. Para o bem e para o mal, o destino ligou-nos sempre e para sempre.
No que me diz respeito, considero Moçambique, sempre o digo, a minha segunda Pátria. Por escolha do coração, naturalmente, e aos que não resistam a pensar que Pátria só há uma, peco-lhes um exercício de imaginação: o de ficcionarem que viveram 21 em Moçambique; que ali profissionalmente se realizaram; que ali travaram um exaltante combate pela sua libertação; que ali tiveram cinco filhos, que é como quem diz ali lançaram cinco raízes; que ali fizeram amigos e inimigos - não há combate libertador sem eles -; que ali experimentaram a atracção irrecusável da paisagem africana (física e humana); que ali construíram uma mundividência aferida pela grandeza de espaços sem fim; que ali, enfim, «beberam a água do Umbeluzi», como por lá se diz. Depois digam-me se pode ou não eleger-se afectivamente uma segunda pátria!
Ter-me fixado em Moçambique foi, aliás, uma exigência de alma. Visitei o território integrado numa embaixada cultural estudantil - faz este ano meio século! Como eu vou ficando velho...! - e tomei irresistivelmente a decisão de voltar e de voltar, fundamentalmente, porque descobri uma causa, e nunca concebi a vida sem causas: a de lutar pela emancipação da África, a anos de vista da Conferência de Bandung, ou seja, do seu despertar.
Ser advogado era dispor de uma arma. Servi-me dela com determinação contra as iniquidades - que não eram exclusivo nosso, ou sequer defeito particularmente português - do regime colonial.
Bati-me, enquanto isso foi por mim julgado possível, por uma saída política e negociada, que visionei em moldes comunitários, no quadro de uma federação política ou apenas cultural, neste caso uma CPLP avant la lettre, algo menos simbólica do que a que tentamos agora recuperar.
Mas Salazar de todo desconhecia o Ultramar. Prisioneiro de S. Bento, era provinciano, apesar de culto. Só pelos livros ou por informadores interessados em desinformá-lo, procurava saber o que no Ultramar se passava. Daí que a sua teima em não discutir a Pátria, como então dizia, tenha, a partir de certa altura, assumido foros de demência. Reagiu ao nacionalismo branco, que precedeu o negro, dificultando a ida de portugueses para as colónias, e praticamente proibindo a sua industrialização. Viria a reagir ao nacionalismo negro pela força das armas, quando era já claro que a era colonial havia chegado ao fim e os mais poderosos impérios coloniais haviam já descolonizado ou aceitado plataformas a isso conducentes.
Os Estados Unidos e a URSS, fortemente anticolonialistas, haviam sido os grandes vencedores da guerra. A Carta das Nações Unidas não reservava futuro à era colonial e não tardaria que resoluções da ONU, na linha de uma generalizada interpretação da história, condenassem os últimos abencerragens da teima colonial, tendo Portugal como destinatário, que foi ficando único. Mas a lógica dos interesses sobrepôs-se à lógica das convicções e a breve trecho a sobrevivência do regime se viu colocada na dependência da perduração da guerra.
A fuga à clarividência não era mais praticável. Daí que eu tenha considerado que a minha defesa de uma solução comunitária havia perdido o prazo de validade e tenha, aberta e publicamente, aderido à tese do respeito pelo direito das nossas colónias à autodeterminação e à independência. Creio, aliás, termos sido, eu e alguns mais - um deles aqui presente, o Embaixador Rui Baltazar - subscritores de um manifesto eleitoral em que essa posição foi assumida, os primeiros resistentes a defender a expressa aceitação desse direito.
O manifesto foi, naturalmente, apreendido. Eu fui, uma vez mais, arbitrariamente descandidatado. Desta vez com base no absurdo fundamento de não ter feito prova da minha qualidade de cidadão português. Não tinha de fazer... Ninguém mais fez, até porque só sendo português podia estar inscrito nos cadernos eleitorais. Mas os próceres desse regime de então entenderam que talvez eu fosse abexim e mais uma vez fui impedido de disputar o simulacro de eleições a que o regime periodicamente se entregava para ludibrio de tolos.
Viria eu a reafirmar, em livro, a inevitabilidade de uma solução política à base do exercício, pelas colónias, do direito à livre escolha do seu destino. Depois de um espectacular êxito inicial de livraria, foi. também apreendido e queimado. Por causa dele, um grupo de energúmenos pidescos programou liquidar-me fisicamente, tendo, inclusive, perpetrado alguns ac-