gentes militares portugueses no estrangeiro configura uma inconstitucionalidade por omissão.
Não resta, igualmente, qualquer dúvida que esta omissão, mantida por tanto tempo, se traduziu, por parte do Governo, na manifestação da surdez aos apelos que vários, entre eles o Professor Jorge Miranda, têm feito.
Não era aceitável nem justificada esta atitude. Representou mesmo um reflexo de sobranceria ou um tique autista. Sirva esta oportunidade para fazer um exercício mais amplo, até para realçar o absurdo da inacção do Governo!
Que problemas se colocam, nesta área, nos dias de hoje? Por que é que tais problemas não se verificam apenas em Portugal e merecem uma atenção cuidada por parte das preocupações de natureza legislativa de muitos outros países?
Nas pesquisas efectuadas sobre o tema detive-me, por exemplo, no que se passa em França. Uma das questões mais interessantes deriva das fórmulas utilizadas para a intervenção dos Parlamentos e/ou dos Chefes de Estado na declaração de guerra.
Num relatório de informação, levado a efeito, em Março de 2000, pela Comissão de Defesa Nacional e das Forças Armadas da Assembleia Nacional Francesa, lê-se o seguinte: «Sobre a decisão de participação de forças em operações externas, o obstáculo principal a uma associação do Parlamento é de ordem constitucional. Com efeito, se o artigo 35.º da Constituição dispõe que 'a declaração de guerra é autorizada pelo Parlamento', não prevê portanto a consulta prévia das Câmaras a todo o envio de forças militares em operações exteriores. Daqui resulta, tendo em conta a interpretação restritiva da noção de declaração de guerra, que o controlo parlamentar é inoperante mesmo que as tropas se envolvam numa operação de combate caracterizado em território exterior, como o demonstrou a participação francesa na intervenção da OTAN na República Federal da Jugoslávia desde 23 de Março a 10 de Junho de 1999.»
O mesmo se pode aplicar à disposição correspondente da nossa Constituição, porque, e seguindo de perto a argumentação produzida, sendo a declaração de guerra uma regra de direito internacional na esteira da segunda conferência da Haia de 1907, pode concluir-se que a evolução real daquilo que objectivamente se integra no conceito de estado de guerra no último meio século coloca em crise de validade tal exigência.
A verdade é esta, Srs. Deputados: na nova ordem internacional que tem vindo a ser construída desde o final da II Guerra Mundial a declaração de guerra caiu em desuso.
A declaração tinha um objectivo. Como se acrescenta: «Tratava-se de, no intuito de prevenir e de enquadrar juridicamente a guerra, de formalizar em direito internacional, a entrada de um Estado, em guerra. A declaração de guerra tinha, deste modo, vocação para ser uma última oportunidade de negociação e, portanto, de prevenção da guerra. Em todo o caso, este conceito não correspondeu às esperanças que havia suscitado e nunca se recorreu a ele por ocasião dos conflitos acontecidos no século XX.»
Mas um outro argumento interessante contra a manutenção do artigo da Constituição francesa citado advém das seguintes considerações: «A Carta das Nações Unidas de 1945 proíbe a guerra na sua dimensão ofensiva. Toda a declaração de guerra torna-se, assim, contrária ao princípio imposto pelo direito internacional, na medida em que declarar a guerra exige tomar a iniciativa de o fazer e não o colocar-se numa posição defensiva.
Daí o pensar-se se não se pode considerar que as operações de restabelecimento da paz, levadas a efeito num país soberano e contra a sua vontade, constituem novas formas de intervenção militar de viva força, susceptíveis de serem ligadas à noção de guerra.».
Logo, nem a declaração de guerra deveria subsistir, por definitivamente anacrónica. Foi a consciência desta dificuldade que fez com que Jean Lecanuet, em 1991, tenha proposto uma revisão do referido artigo 35.º, no qual inseria uma alínea com a seguinte redacção: «o Parlamento é mantido informado sobre toda a intervenção no exterior das fronteiras das forças militares francesas bem como sobre a evolução e o fim da intervenção».
Mais precisa e completa, uma outra iniciativa posterior, datada de 1993, da autoria de uma comissão presidida por Georges Vedel, sugeriu um outro texto: «Toda a intervenção das forças armadas francesas no exterior do território da República é objecto de uma declaração do Governo perante o Parlamento, o mais tardar, oito dias depois do seu início. Esta declaração é seguida de um debate. Fora do período de sessão legislativa, o Parlamento reúne especialmente para este efeito.»
O autor do relatório analisado propõe também uma revisão do artigo 35.º da Constituição francesa, sublinhando o acolhimento da obrigação, por parte do poder executivo, de recolher previamente o parecer do Parlamento antes de qualquer intervenção das forças francesas em operações exteriores, excluindo as intervenções que digam respeito à evacuação de nacionais.
O que se passa entre nós? De acordo com a Constituição da República Portuguesa, a declaração de guerra envolve necessariamente três órgãos de soberania: o Presidente da República, o Parlamento e o Governo. À luz dos argumentos expendidos por François Lamy, a solução portuguesa sofreria das mesmas vulnerabilidades. Tem a vantagem de fazer intervir aqueles três órgãos de soberania, em função da excepcional gravidade da situação e das competências atribuídas a cada um deles. O Presidente da República é o Comandante Chefe das Forças Armadas. O Parlamento dispõe da reserva absoluta de competência legislativa quanto à organização da defesa nacional, definição dos deveres dela decorrentes e bases gerais da organização, do funcionamento e do reequipamento e da disciplina das Forças Armadas, o que acresce ao seu poder de fiscalização política do Executivo. O Governo tem o poder de decidir a intervenção das Forças Armadas e a sua direcção efectiva.
Neste caso concreto da declaração de guerra, o percurso desenhado na Constituição passa pela sua proposta ao Presidente da República, que só a declara, ouvido o Conselho de Estado, mediante autorização da Assembleia da República. A exigência do texto constitucional é tanta que parece admitir apenas a declaração de guerra «em caso de agressão efectiva ou iminente».
Mas a verdade é que as intervenções realizadas de acordo com os modelos sugeridos de verdadeiras acções de guerra ficam, na relação com o Parlamento, à porta da Constituição.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Muito bem!
O Orador: - A referência constitucional à participação das Forças Armadas no envolvimento em acções humanitárias e de paz resultou de uma proposta do PSD e materializou-se no n.º 5 do artigo 275.º da Constituição. Porquê?