O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

3396 | I Série - Número 061 | 11 de Março de 2004

 

Declaração de voto enviada à Mesa para publicação relativa à votação, na generalidade, dos projectos de lei n.os 1/IX - Interrupção voluntária da gravidez (PCP), 89/IX - Despenalização da interrupção voluntária da gravidez (BE), 405/IX - Sobre a exclusão da ilicitude de casos de interrupção voluntária de gravidez (PS) e 409/IX - Sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (Os Verdes) e dos projectos de resolução n.os 230/IX - Propõe a realização de um referendo sobre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias), 203/IX - Propõe a realização de um referendo sobre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez realizada nas primeiras 10 semanas (PS), 227/IX - Propõe a realização de um referendo sobre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (BE) e 225/IX - Sobre medidas de prevenção no âmbito da interrupção voluntária da gravidez (PSD e CDS-PP).

Dada a particular sensibilidade da temática em causa e a total liberdade de voto de que gozaram os Deputados do PS, reconhecida com lucidez pela direcção do respectivo grupo parlamentar, entendo ser meu dever perante os eleitores explicitar, ainda que sinteticamente, o sentido e as motivações da forma como votei as diferentes propostas relativas à temática do aborto.
Votei favoravelmente as propostas de resolução no sentido da realização de um novo referendo sobre a descriminalização do aborto; votei favoravelmente o projecto de lei do PS que, no essencial, visava descriminalizar a prática do aborto em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, desde que efectuado até às 10 semanas e a pedido da mulher, após consulta de planeamento familiar, bem como alargar para 16 semanas a descriminalização do aborto em caso de perigo para a vida ou a saúde física ou psíquica da mulher; votei contra os projectos de lei apresentados pelo PCP, pelo Bloco de Esquerda e por Os Verdes e, finalmente, acompanhei a direcção do Grupo Parlamentar do PS na abstenção face à proposta de resolução da maioria que visava apelar ao Governo no sentido da adopção de medidas efectivas para o cumprimento da legislação vigente, incluindo matéria de educação sexual e de apoio à maternidade.
No que diz respeito ao referendo, considero que se justifica promover uma nova consulta popular pelas razões seguintes: o tempo decorrido desde o referendo anterior; o facto de este não ter alcançado a participação suficiente para se apresentar como vinculativo do ponto de vista jurídico-constitucional; e, sobretudo, os sinais de presumível evolução do posicionamento da sociedade portuguesa face ao problema do enquadramento jurídico-penal do aborto, a que acresce a notória disponibilidade da comunidade para regressar à discussão pública do assunto, como se prova pelos sucessivos pronunciamentos das mais diversas personalidades e instituições, bem como pela impressionante mobilização conseguida pelas campanhas de recolha de assinaturas desenvolvidas, com sinal contrário, nas últimas semanas.
Quanto ao meu voto favorável ao projecto do PS, ele é coerente com o modo como votei no referendo nacional de há uns anos atrás. Entendo que o valor da vida é um valor ético fundamental, inerente ao reconhecimento de um outro valor também fundamental: a dignidade da pessoa humana. Ambos os valores, indissociáveis como são, integram e estruturam a matriz axiológica em que assenta o nosso Estado de direito democrático, independentemente de o seu reconhecimento ter para muitos, como é o meu caso, um fundamento também religioso. Sem dúvida que o reconhecimento do valor da vida, enquanto valor estruturante da organização social, exige do Estado e das instituições um conjunto de respostas efectivas. Todavia, a reacção jurídico-penal é apenas uma de entre outras respostas possíveis e nem sempre será a mais eficaz ou pertinente, reclamando uma prévia ponderação de política criminal e, mesmo em sede de eventual aplicação da lei, nunca dispensando uma cuidada avaliação da situação concreta. É evidente que a incontroversa relevância do valor da vida humana faz dela um bem jurídico de tal modo importante que, por princípio, justifica a sua tutela, e tutela severa, pela lei penal, incluindo quanto à vida intra-uterina, embora o legislador não deva ignorar a ausência de um consenso científico e ético quanto à natureza da vida intra-uterina nas primeiras semanas de gestação. Contudo, mesmo à luz da lei actual, o valor da vida intra-uterina não se impõe ao legislador em sede jurídico-penal de modo a implicar, necessariamente, a criminalização do aborto em todas as situações, como se prova pela descriminalização já consagrada do aborto em casos como o da violação.
Seja como for, não creio que possa dizer-se, sem deliberadamente se insistir em ignorar factos demasiado graves e atentatórios de outros valores éticos também fundamentais, que a lei vigente, tutelando a vida intra-uterina nos termos em que o faz, tem por efeito a sua defesa. Pelo contrário, não só a lei vigente não assegura a efectiva defesa da vida, na medida em que convive hipocritamente com um amplo e florescente circuito comercial do aborto dito "clandestino", como o seu verdadeiro efeito é inviabilizar a prática do aborto nas condições sanitárias e de dignidade pessoal que só um quadro de legalização poderia garantir. Dito de outro modo, a verdadeira consequência prática da lei é remeter para uma viagem tenebrosa à escuridão da marginalidade, com o seu rasto traumático de sequelas físicas e psíquicas, quando não mesmo de risco de vida, as mulheres que, em condições de vida muitas vezes dramáticas, se sentem na necessidade de optar