I SÉRIE — NÚMERO 93
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Perante votos de pesar referentes à morte de personalidades públicas relevantes tenho por princípio a
adoção de um sentido de voto favorável. Porém, perante estes três votos de pesar de conteúdo semelhante,
vejo-me obrigado a alterar esta que tem sido a minha postura e, portanto, abster-me-ei em relação a todos eles.
Faço-o, por várias razões. Em primeiro lugar, a figura de Frank Carlucci surge-nos como inseparável da
Central Intelligence Agency (CIA), que, no período em que Carlucci exerceu as suas funções como Vice-Diretor
da CIA (1978-1981) e nos períodos anteriores da década de 70 (em que, também, assumiu outras relevantes
responsabilidades), adotava e promovia, quer no plano interno, quer no plano externo, métodos e práticas de
atuação totalmente contrários aos princípios basilares dos regimes democráticos e do Estado de direito e
atentatórios dos direitos humanos e da soberania e independência dos Estados (que hoje seriam altamente
censuráveis e que mesmo na altura muitos de nós censurámos).
Estas minhas palavras são, de resto, confirmadas por um conjunto de documentos que com o passar dos
anos têm sido tornados públicos.
No plano interno, veja-se, por exemplo, a atuação da CIA, no contexto do final dos anos 60 e da administração
Nixon, e a postura que adotou perante os movimentos sociais que lutavam contra as desigualdades raciais, pelo
reforço dos direitos civis e políticos dos afroamericanos e contra a guerra do Vietname: «A CIA e o FBI espiaram
e perseguiram os manifestantes internos defensores dos direitos civis e antiguerra. Num infame incidente, o FBI
colocou sob escuta os quartos de hotel de Martin Luther King, obteve provas de infidelidade e então tentou usar
as gravações para chantagear King para que se matasse». (tradução nossa do original)1
No plano internacional, estão hoje mais do que documentadas e estudadas as práticas e métodos utilizados
pela CIA no apoio a regimes ditatoriais, à sua implementação e à sua subsistência, que demonstraram
inequivocamente que esta Agência não olhava a meios para atingir os fins. Paradigmática destes métodos é a
atuação da CIA no apoio ao ditador chileno Augusto Pinochet e à sua tomada do poder por via de um sangrento
golpe militar e assassinato do Presidente, democraticamente eleito, Salvador Allende e de um conjunto de outros
democratas e na sustentação que lhe continuou a dar nos anos seguintes marcados pela opressão dos
democratas e opositores políticos.
Em segundo lugar, importa sublinhar que, mesmo antes de assumir oficialmente funções na CIA, o percurso
de Frank Carlucci esteve sempre envolto em polémica e suspeições, tendo muitas vezes sido encarado como
um elemento da CIA ou, pelo menos, com fortes ligações a esta Agência. Antes de chegar a Portugal, Carlucci,
em 1960, assumiu funções como Political Officer da embaixada dos EUA em Leopoldville (Congo), onde
permanece até hoje pouco claro qual o grau de envolvimento que teve no derrube do regime de Patrice
Lumumba. Posteriormente, em 1965, ocupa cargos idênticos na embaixada dos EUA no Rio de Janeiro (Brasil),
num contexto em que a ditadura militar se implantava.
É certo que só a abertura de certos documentos ao público e o estudo dos historiadores poderão esclarecer
qual o papel de Frank Carlucci nestes momentos cruciais. Porém, alguns dados já são conhecidos e provêm da
voz do próprio, aquando da sua audição para Vice-Diretor da CIA:
«Contrary to allegations in the Lisbon Communist press, I have never been on the CIA payroll; but as a Foreign
Service officer I have had a working relationship with the Agency and have been a user of the intelligence product.
I have also been involved in intelligence budgets, and I am familiar with both the problems and the benefits of
interagency coordination».
E ainda afirmou que:2
«I have had the privilege of working with intelligence professionals from the lowest to the highest level. While
I did not normally know their sources and methods, nor, did I need to, I was able to benefit greatly from their
information and to appreciate the motivation, objectivity, self-sacrifice and physical and moral courage with which
they approached».
Ou seja, Carlucci diz que não era pago pela CIA, mas que tinha uma relação de trabalho com a CIA e que
«normalmente não conhecia as fontes e métodos» da CIA. Ora toda a gente bem informada naquele tempo
estava a par dos métodos da CIA. Em Portugal, todos nós, que participámos no período após o 25 de Abril de
1 Veja-se a seguinte ligação: https://www.washingtonpost.com/news/wonk/wp/2013/06/27/in-the-1970s-congress-investigated-intelligence-abuses-time-to-do-it-again/?noredirect=on&utm_term=.b99da78b381c (Consultada em 06/06/2018). 2 Ver https://www.intelligence.senate.gov/sites/default/files/hearings/95carlucci.pdf