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II SÉRIE-A — NÚMERO 40
A inserção de Portugal no sistema que deixou de ser euromundista para ser apenas europeu, está a exigir redefinições de soberania, tal como aconteceu a todos os Estados membros da nova união política, mas é visível que a hierarquia interna das potências de novo fará diversificar os efeitos, agora dando talvez origem àquilo que se vai chamando a Europa a duas velocidades, uma forma moderada de reconhecer os factos.
A questão mais relevante, neste processo de reorganização do sistema mundial, em que se inscrevem a reconstrução europeia e a redefinição portuguesa, é a que diz respeito à identificação dos elementos do sistema que ficaram submetidos — e em que medida— à soberania portuguesa, e dos que ficaram no regime exógeno tradicional.
O que significa que a soberania mantendo o nome, como geralmente aconteceu nas crises do passado, está em causa, quer no que toca às capacidades efectivas que a integram como poder, quer no que respeita à área dos interesses juridicamente entregues à sua regência.
Tudo isto pode ser objecto de definição formal — como acontece com o Acto Único, do Luxemburgo, e com o Tratado da União Europeia, de Maastricht —, mas ainda fica uma distância entre a definição formal e os factos.
Assim, a moeda única europeia implica uma restrição da área de gestão da soberania; a manutenção jurídica da soberania sobre o mar territorial, e os poderes jurídicos sobre a área económica exclusiva perdem realidade se não existirem as capacidades efectivas do Estado, como provavelmente acontecerá.
Antes da descolonização final, a soberania portuguesa sobre os territórios ultramarinos, limitada pelos factores exógenos já amoldados pela longa duração, definia a autonomia efectiva dentro de uma habitualidade amparada pelo sistema euromundista global, de tal modo que a real hierarquia das potências parecia legitimada pelo tempo. A mudança já encontrou uma redefinição do regime político, mas continua incerta a estrutura do sistema, e duvidosa a identificação dos elementos deste sistema que ficam na jurisdição não participada da soberania. O debate nacional sobre a União Política europeia varia por Isso entre as teses federalistas, que poucos adoptam, e a negação de que a soberania esteja em causa, o que também raros se atrevem a sustentar (J).
2 — Foi portanto com incerta percepção da soberania efectiva, de conteúdo especialmente dependente da evolução do projecto europeu, que Portugal se encontrou sem conceito estratégico nacional depois de 1974, isto para além do facto que respeita àquele projecto europeu, o qual mereceu uma adesão generalizada das forças políticas, e supõe-se que também da população, todavia mal informada sobre o tema.
As obrigações institucionais dentro da unidade política europeia, avaliadas na Assembleia da República nos debates que, em 8 e 9 de Dezembro de 1992, precederam a aprovação do Tratado de Maastricht, estabelecem porém um pressuposto da necessária definição do novo conceito estratégico nacional; ao contrário do que aconteceu até 1974, o europeísmo tem precedência sobre todos os outros eventuais objectivos abrangidos pela tradição aüântica secuAar.
(*) G. E. G.. Catlin. Sistematic Politics — Elemento Politica el Sociológica. Toronto. 1962, cap. 8.
Walter S. Jones, The Logic of International Relations. N. Y., 1938, pp. 284 e segs.
A revisão constitucional desse ano, necessária para viabilizar a aprovação parlamentar do Tratado em que o Governo se comprometera excedendo os preceitos da Constituição da República consagrou o europeísmo, na versão comunitária, como elemento do conceito estratégico constitucional, e as dúvidas cívicas e das forças políticas é de presumir que pouco influenciarão a sua inclusão num conceito estratégico nacional.
Para além das formulações jurídicas que dão forma ao compromisso europeísta, as dependências efectivas, a debilidade do Estado Português a caminho de Estado exógeno, por exemplo na capacidade financeira, na moeda e na defesa, tudo aponta no sentido de que o europeísmo condicione as opções e as capacidades de intervir autonomamente no resto do mundo. Tem de separar-se a teoria dos grandes espaços, e a sua aplicação concreta ao espaço europeu, de uma inevitável percepção da hierarquia dos Estados, condicionada por valores históricos e referências culturais que não obedecem ao racionalismo empresarial (').
Um país exógeno, conduzido à perda do conceito estratégico secular pela mudança do ambiente externo, liberta-se das concepções culturais históricas em tempo demorado, enquanto que a necessidade de responder à mudança estrutural decorrem em tempo acelerado.
A contradição tem.previsível reflexo no discurso político da captação dos eleitorados, com fácil desencontro entre a semântica e os factos.
O projecto do grande espaço europeu está referido a altos valores, designadamente no domínio da segurança e da manutenção da paz, mas a exiguidade dos Estados não pode ser coberta pelo manto diáfano da fantasia triunfalista, como se a adesão inevitável fosse uma condição necessária do êxito global.
Porque, entre mais razões, a exiguidade condiciona toda e qualquer proposta alternativa para reformular o conceito estratégico nacional em relação ao mundo de onde todas as soberanias europeias retiraram a presença colonial neste século. A nova matriz europeia e a exiguidade do Estado são variáveis que condicionam a definição possível do conceito estratégico relativo à presença e acção no resto do mundo.
3 — A relação das potências ocidentais, especialmente com o terceiro mundo, também entrou em novo processo de mudança depois de 1989 e do fim da guerra fria.
A primeira mudança deste século, que foi a descolonização engendrada pela doutrina da ONU, alterou de facto a tabela das presenças soberanas exógenas nessa área, mas manteve o interesse activo das maiores potências pelo controlo das soberanias nascentes. No caso português, a retirada da soberania dos territórios que constituíam o Império com o nome de províncias, depois de 14 anos de guerra em Angola, marcou o início de outros 14 anos de guerra por procuração, com as superpotências a sustentarem cada uma das facções (4).
Todavia, depois do fim da guerra fria, o interesse que tais superpotências mostraram pelo domínio da durante quatro décadas de rivalidade sangrenta, foi desmobilizado, e o jogo privativo dos não alinhados passou a
(') CarJeal Jean-Marie hustiger, Nous avons rendez-vous avec l'Europe. Paris, 1991, p. 189: «La tâche spécifique de l'Europe, cour l'avenir de l'humanité, est donc de mettre les droits fondamentaux de la personne humaine à l'abri de l'arbitraire et des tyrannies.»
(') J. F. Bavard, L'État en Afrique, La Politique du Ventre, Paris, 1989; Terray (cooril.), L'État Contemporain en Afrique, Paris. 1987, Frawaert, Le Monde du xxi siècle. Une théorie des systèmes mondiaux Paris. 1991