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1999 | II Série A - Número 041 | 04 de Março de 2004

 

Volvidos que estão mais de cinco anos sobre o referendo, entendem os proponentes de todos os projectos de lei em discussão que este é o momento de se voltar a discutir a despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

III - O actual quadro legal da interrupção voluntária da gravidez em Portugal:
O artigo 24.º da Constituição (CRP) estabelece que a vida humana é inviolável e que, em caso algum, haverá pena de morte.
De acordo com a douta posição dos constitucionalistas Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito à vida é prioritário, estando na base de todos os direitos das pessoas e que decorrem da sua consagração.
O direito à vida significa o direito de não ser morto, de não ser privado da vida. Neste contexto, a proibição da pena de morte e a punição do homicídio surgem como corolário do direito à vida.
Conexos com esta questão estão, ainda que de forma indirecta, envolvidos outros princípios constitucionais, designadamente os consagrados no artigo 36.º, n.º 3 (igualdade dos cônjuges à manutenção dos filhos), no artigo 25.º (direito à integridade pessoal), no artigo 1.º (direito à dignidade da pessoa humana), no artigo 67.º, n.º 1 (realização pessoal), no artigo 68.º, n.º 2 (valores sociais eminentes da maternidade e paternidade), no artigo 69.º (desenvolvimento integral das crianças) e no artigo 71.º (plenitude dos direitos dos que sofrem de doença física ou mental).
A questão de saber se o artigo 24.º da CRP abrange também a vida intra-uterina, foi profundamente tratada no citado Acórdão n.º 288/98, do Tribunal Constitucional, tendo concluído que "não havendo uma imposição constitucional de criminalização na situação em apreço, cabe na liberdade de conformação legislativa a opção entre punir criminalmente ou despenalizar a interrupção voluntária da gravidez".
No direito ordinário, a matéria objecto das iniciativas legislativas em análise encontra-se regulada nos artigos 140.º, 141.º e 142.º do Código Penal referente ao capítulo II "Dos crimes contra a vida intra-uterina".
Os Códigos Penais de 1886 e 1982 incriminavam todos os casos de interrupção voluntária da gravidez.
Somente com a Lei n.º 6/84 viriam a ser estabelecidas três situações tipo onde se exclui a ilicitude do aborto, a saber:

" Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida - aborto terapêutico;
" Mostrar-se indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez - aborto terapêutico;
" Existência de seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação e seja realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez - aborto eugénico;
" Verificação de sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez - aborto ético.

Com a Lei n.º 90/97, de 30 de Julho, veio a ser alterado o artigo 142.º do Código Penal, permitindo o alargamento dos prazos do aborto eugénico para as primeiras 24 semanas de gravidez, bem como para as 16 semanas nos casos em que a gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual.

IV - Enquadramento genérico da interrupção voluntária da gravidez em Portugal

As Nações Unidas publicaram recentemente um relatório subordinado ao título "Abortion Policies: A Global Review" que contém um exame, país a país, das políticas nacionais relativos ao aborto induzido e o contexto dentro do qual o aborto é praticado, com o objectivo de proporcionar informação objectiva acerca da legislação e políticas relativas ao aborto no final do século XX.
Este relatório parte da constatação de que o aborto é uma matéria que faz levantar questões e controvérsias "apesar de ser comummente praticado pelo mundo fora e tenha sido praticado mesmo muito antes do início da História registada".
E prossegue referindo que "o aborto suscita questões fundamentais acerca da existência humana tais como, quando começa a vida e o que nos faz ser uma pessoa humana. O aborto está no coração de questões controversas tais como o direito das mulheres ao controlo do seu corpo, a natureza do dever do Estado de proteger os nascituros, a tensão entre as visões seculares e religiosas da vida humana e o indivíduo e a sociedade, os direitos das mães e dos pais a serem envolvidos na decisão sobre o aborto, e o conflito entre os direitos da mãe e do feto. Também central na questão do aborto é uma das questões sociais mais controversas de todas - a sexualidade. Qualquer discussão sobre o aborto leva inevitavelmente à consideração sobre como surgiu a gravidez e às formas através das quais poderia ter sido prevenida através da utilização dos métodos anticonceptivos. No início de um novo século, estas questões e problemas continuam a ocupar um lugar significativo na intervenção pública em todo o mundo".
Depois de uma descrição sobre os desafios práticos e conceptuais do estudo realizado, no capítulo relativo às principais dimensões da política sobre o aborto, conclui sumariando as principais contradições entre a lei e a política, por um lado, e a prática, por outro, nos seguintes termos: "Por detrás destes desafios conceptuais, harmonizar a lei e a política de um país com aquilo que é a prática continua a ser o maior problema. Em muitos países onde a prática do aborto é na generalidade ilegal, as estatísticas indicam que um largo número é praticado, a maioria deles ilegais, com poucas condenações. Dos cerca de 50 milhões de abortos praticados anualmente em todo o mundo, estima-se em cerca de 40% aqueles que são feitos ilegalmente (WHO, 1994a). Nestes países, as autoridades ignoram ou toleram a prática do aborto ilegal ou oficiosamente licenciam clínicas para este propósito. Um certo número de factores é responsável por esta situação. Entre eles está a facilidade com que eles são praticados, a falta de vontade ou de recursos para o condenar, particularmente face à pressão das necessidades sociais, e da natureza clandestina do processo. Em alguns países, onde o aborto é tecnicamente legal, o acesso ao pessoal e às instituições pode ser limitado, assim como a falta de recursos financeiros, o que resulta em mais abortos ilegais. Nos poucos em que o aborto é autorizado, o Governo pode não ter possibilidades de regular a implementação da lei. Em todas estas situações, raramente se aplica a lei exceptuando os casos mais graves, envolvendo normalmente a morte da mulher grávida. Em alguns países, a indiferença perante o aborto é tão grande que a maioria das pessoas não conhece a lei em vigor. O advento do novo desenvolvimento científico como o RU 486, a chamada 'pílula abortiva', torna mais fácil abortar sem a necessidade de equipamentos especiais, o que provavelmente aumenta o fosso entre a lei e a prática".