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0017 | II Série A - Número 005 | 06 de Outubro de 2006

 

Outro pormenor importante é a quantidade de meios técnicos e humanos que são disponibilizados para a investigação deste tipo de crimes - no processo de Aveiro foram utilizadas escutas telefónicas, foi montado um esquema de vigilância ao médico arguido durante vários meses, as mulheres foram sujeitas a devassadores exames ginecológicos para os quais não deram o seu consentimento, e que foram pedidos por órgãos policiais e não por magistrado, como exige a lei. No processo de Setúbal foi proferido despacho de não pronúncia pelo juiz de instrução, tendo o Ministério Público recorrido da decisão para a Relação de Évora e obtido decisão favorável, prosseguindo, assim, o processo para a fase de julgamento.
Esta utilização de meios para perseguir as mulheres implica que outros crimes que efectivamente põe em causa a vida em sociedade fiquem por investigar, pois os meios não são infinitos.

As implicações éticas e políticas da lei

Ainda na Idade Média São Tomás de Aquino questionava "Caberá à lei humana proibir todos os vícios e preceituar todas as virtudes?" (Summa Theologiae) - e respondia negativamente. Ora, não será isso mesmo que se pretende fazer no século XXI com a questão do aborto? A lei deve, de facto, estabelecer o domínio das garantias da liberdade e da responsabilidade, e não deve procurar impor ou punir comportamentos que relevam da escolha pessoal, familiar ou social. Durante a sua intervenção na Conferência Europeia sobre Desafios Éticos no Atendimento da Pessoa com Deficiência Profunda, Frei Bento Domingues afirmou que "algumas questões da bioética acabam por exigir um enquadramento jurídico num Estado de direito, numa democracia, para se poder viver bem em conjunto em instituições justas. O que levanta a própria questão da invenção da democracia: que democracia queremos nós construir? É uma democracia cada vez mais exigente que o debate de questões éticas, de pronunciamentos éticos e de bioética - como, por exemplo, os referendos sobre o aborto ou a eutanásia (…) - podem vencer a tentação frequente de trocar o sentido de responsabilidade pela banalização, pela ética pimba. (…) A sociedade tem de sustentar-se em valores para os quais a razão instrumental e a tecnociência é cega. Sem os valores da autonomia, da solidariedade, e da compaixão, a vida é brutal, cruel".
Está na hora de quebrar com preconceitos morais persecutórios e de deixar de recorrer à invocação de um princípio religioso, a que Frei Bento Domingues chamou "o tapa buracos da ignorância humana", e é por isso tempo de procurar soluções efectivas e concretas. Não basta a indignação perante situações como as dos julgamentos de mulheres pelo facto de terem abortado, porque essas situações continuarão a existir enquanto a lei em vigor não for alterada.
Nesse sentido, atente-se, por exemplo, no acórdão do julgamento da Maia: "Relativamente aos crimes contra a vida intra-uterina por que vêm pronunciadas diversas arguidas e cuja punibilidade constitui o cerne da chamada problemática do aborto, considera-se útil, antes de proceder à subsunção jurídica das condutas apuradas, deixar consignado o esclarecimento, sobretudo necessário para quem não conhece bem os critérios de decisão e regras próprias do funcionamento dos tribunais, de que não se ignoram nem esquecem aspectos, tão polémicos quanto respeitáveis e importantes, que vão do filosófico, moral e religioso, passando pelo científico até ao social e político, e que confluem na discussão pública do problema. (…) Ao tribunal, como órgão de soberania independente, cabe, apenas, a função de administrar a justa solução do caso objecto do processo, jamais os meios ou critérios de a conseguir poderão ser outros que não a Constituição e a lei a que deve obediência, independentemente do julgamento que sobre as respectivas soluções jusnormativas qualquer cidadão é livre de fazer ou defender, democraticamente".
Outras opções foram entretanto defendidas, como a não punição das mulheres através do recurso ao estado de necessidade desculpante. Contudo, esta opção não é uma verdadeira opção, pois, do ponto de vista jurídico, o acto mantém a sua ilicitude e, por outro lado, as mulheres continuarão a ser investigadas e julgadas, ficando dependentes de mais um juízo de valor acerca das suas opções.
Por tudo isto, e na convicção de que uma sociedade que penaliza as mulheres de serem mães e também lhes impede a decisão de escolher ou não uma maternidade, não é uma sociedade digna, o Bloco de Esquerda propõe uma novo enquadramento para a prática da IVG no Serviço Nacional de Saúde a pedido da mulher.
A lei actualmente existente não previne o aborto clandestino, antes acarreta para as mulheres que optam pela interrupção voluntária da gravidez não só danos físicos de abortos feitos em condições clandestinas e deficientes em termos de saúde, mas também danos psicológicos agravados pela criminalização do acto praticado.
É bem sabido que não há nenhuma contracepção totalmente eficaz e à prova de erros, e que por isso uma gravidez não desejada pode sempre ocorrer. Por outro lado, no campo das escolhas reprodutivas há factores afectivos e sociais bivalentes que tornam difícil o uso da contracepção.
Manter em vigor uma lei que arrasta as mulheres para as redes da clandestinidade e insegurança, marcando de forma dramática as de menores recursos económicos que se sujeitam a formas quase artesanais de intervenção, reflecte uma falta de sensibilidade social e uma forma desumana de enfrentar este grave problema social e de saúde pública.
Aliás, esta é uma ideia comum a Deputados de todos os grupos parlamentares. Recorde-se a tomada de posição de dirigentes do PSD e do PP, logo após a publicação pelo jornal Expresso das declarações do Bispo do Porto favoráveis à não penalização das mulheres. Imediatamente vieram público dizer que a penalização era um erro e que os seus partidos estavam abertos a alterar a lei. Logo de seguida a disciplina foi imposta e a