17 DE NOVEMBRO DE 1994
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Como atrás anotámos, a redacção destes n.05 4 e 5 parecia apontar para diplomas autónomos — «visando a sua (dos futuros diplomas, dizemos nós) adaptação às normas do Código da Estrada».
No entanto, também no caso do n.° 5, o Governo entendeu não usar a faculdade concedida pela AR, por certo baseado na mesma razão da reforma em curso do Código Penal onde tais normas criminais, numa feição alargada a situações que extravasam da própria circulação rodoviária, estavam previstas (29).
Logo, as disposições criminais do Decreto-Lei n.° 124/ 90 não foram revogadas, pois que só se previa ou a sua revisão ou o alargamento dos pressupostos de punição à condução sob o efeito de estupefacientes, psicotrópicos ou similares. Uma vez que isso não sucedeu, mantêm-se em vigor.
E do texto do artigo 2° do Decreto-Lei n.° 114/94 (que aprovou o Código da Estrada) não se pode extrair o argumento de que foi revogada a legislação complementar (incluindo, portanto, aquele Decreto-Lei n.° 124/90, que se opunha às disposições do novo Código pela simples razão de que nele não se prevê qualquer disposição de natureza criminal). Por outro lado, da Lei (de autorização) n.° 63/93 parece ressaltar com clareza que o novo Código da Estrada só absorveria a matéria das contra-ordenações — artigo 2.°, n.° 2, alíneas a) e b) — e que os ilícitos criminais atinentes à violação das regras de trânsito ou à condução sob influência do álcool ou substâncias similares se mantinham enquanto não houvesse revisão ou substituição das normas vigentes.
6.2 — Passemos ao elemento sistemático.
Assume aqui particular relevo a evolução que, entretanto, se perfila na área da legislação penal geral.
É comummente entendido que um código penal só deve inserir aquelas disposições ou tipos legais que se encontrem indiscutivelmente sedimentados no pulsar da comunidade social como infracções com um elevado grau de estabilidade e consenso. Para saber por onde passa a fronteira não é fácil encontrar sensores fidedignos para além do que pensam os representantes da comunidade no Parlamento.
Ora, o futuro Código Penal, na sua versão revista, vai inserir os crimes de «omissão de auxílio» —manifestamente mais amplo que o «abandono de sinistrados» —, a «condução perigosa de veículo rodoviário» (a abranger a condução sob efeito do álcool, estupefacientes e substâncias similares) e a «condução de veículo em estado de embriaguez».
Flagrante, sem dúvida, que nos encontramos numa fase evolutiva desta legislação; mas também que o legislador entende «consolidados» os perigos de certos comportamentos em termos tais que lhes vai conceder «dignidade» de inclusão numa compilação que, por sua natureza, demanda estabilidade, ou seja, garantia de não ficar sujeita a flutuações frequentes.
O momento temporal coetâneo em que se procede à discussão parlamentar do Código da Estrada e da revisão do Código Penal fazem naturalmente pressupor que se tinham presentes as disposições de um e outro, designadamente quando se entrelaçavam em certos domínios.
O9) A proposta de lei com vista à revisão do Código Penal é publicada no Diário da Assembleia da República, 2." série, de 24 de Fevereiro de 1994, tendo a discussão da autorização legislativa do Código da Estrada ocorrido em meados de 1993. Todavia, já eram conhecidos os trabalhos de revisão do Código Penal, nessa parte. E a autorização relativa ao Código da Estrada só caducou em Fevereiro de 1994.
Por isso que se compreenda a moderação demonstrada pelo legislador do Código da Estrada em não ter usado da autorização legislativa no que toca aos n.os 4 e 5 do citado artigo 2.° da Lei n.° 63/93, sem que aliás daí adviesse prejuízo para os valores defendidos pelo sistema jurídico, na medida em que as leis vigentes não precludiam o essencial dos interesses em causa e podiam aguardar a sua revisão e substituição pelo Código Penal.
Se não fosse assim, deparar-se-ia com duas contradições insanáveis, na área estrita da matéria sob consulta.
Por um lado, enquanto se brandia a importância e valor da severidade das sanções como meio preventivo e repressivo de actuação contra a sinistralidade rodoviária —da qual o nosso país sai como péssimo exemplo —, amole-cia-se o tecido das sanções criminais num capítulo geralmente conhecido como dos mais perigosos (ainda que apenas pelo período que medeia entre a entrada em vigor do Código da Estrada e a próxima vigência do Código Penal).
Por outro lado, cair-se-ia num hiato legislativo para o qual não se vislumbra qualquer explicação plausível (se se pode dizer que resta a aplicação da contra-ordenação, uma vez que a TAS seja superior a 0,8 g/l, não se podem esquecer as invocadas diferenças de natureza e efeitos jurídicos) (30).
6.3 — Os trabalhos preparatórios da emissão do Código da Estrada e, em particular, a discussão havida na AR apontam igual e decididamente no sentido da manutenção da vigência dos artigos 1.° e 2." do Decreto-Lei n.° 124/90.
Nemo discrepante sobre as afirmações do Ministro da Adrninistração Interna quando reiterava a ideia de que a condução de veículos com TAS igual ou superior a 1,2 g/l era sancionada — continuava a ser sancionada — CTurünalmente.
Discurso esse que, como já se salientou, se tornaria de todo incongruente ao advogar-se o tom de severidade e o seu reflexo na conduta dos condutores e, do mesmo passo, se diminuísse a sanção correspondente (ainda que por um período transitório).
Quebrar-se-ia a unidade e a coerência do sistema, no qual cada norma deve inserir-se harmoniosamente.
Se nos voltarmos para a ratio legis, para a finalidade a atingir com as normas, também por aqui se compreenderá que o legislador não desejasse aliviar o peso das sanções, numa altura em que o País apresenta uma taxa de acidentes de viação comparativamente «vergonhosa», como se disse na AR.
6.4 — Poderíamos seguir — ainda que com alguma dúvida metodológica— uma outra via de raciocínio: o Decreto-Lei n.° 124/90, ao lidar no campo específico da condução relacionada com a ingestão de bebidas alcoólicas, confígurar-se-ia como uma lei especial perante o Código da Estrada anterior. Sendo assim, a lei geral, o novo Código da Estrada, não revoga a lei especial a não ser que outra seja a intenção inequívoca do legislador.
Tal inequivocidade não se verifica. Bem pelo contrário, os sinais colhidos apontam para que as previsões e
C0) Repare-se que nos termos do artigo 159.° do CE se remete para «legislação especial» o procedimento de fiscalização de álcool, estupefacientes e similares. No entanto, a condução de veículo sob influência de estupefacientes, psicotrópicos, estimulantes (que não deixam de ser, pelo menos em parte, substâncias psicotrópicas) é enviada para «diploma próprio» — n.° 3 do artigo 87." Não deixa de se notar, de um lado, a preocupação de equiparar a condução sob efeito de narcóticos ou substâncias psicotrópicas à condução sob influência do álcool mas, de outro lado, «desequipara-la», de algum modo, em lermos criminais — cf. a não inclusão no artigo 292° da revisão do CP e o n.°4 deste artigo 87.° do CE.