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4124 I SÉRIE - NÚMERO 97

incomunicável, numa pequena cela. Durante o dia, apenas meia dúzia de palavras, com o carcereiro. Era o silêncio total, o completo isolamento. Nada sabia do que se passara lá fora. Todo o dia 25 de Abril foi ainda vivido sob o fascismo, a prisão, a tortura.
Ao princípio da noite, sinais na parede informavam que tinha havido uma revolução. Revolução dos ultras, como há tempo se ouvira, seria a liquidação imediata; revolução democrática, que sabíamos preparar-se, possivelmente também. Lembrava a ameaça do inspector da PIDE, na véspera, durante o longo interrogatório: «Se houver alguma coisa, eu próprio irei matar, um a um, os da incomunicabilidade, os mais perigosos.»
O dia 26 amanheceu sob a expectativa tensa, a opção mais decisiva: no torpor, na sonolência, na febre.
Súbita, a palavra liberdade, aí, soou falsa: gritada por um oficial, na nossa frente, metralhadora na mão.
Não foi o choque brusco, a viragem imediata no fio da vida e na História. Foi o acordar lento, a memória repetida, do fundo da lembrança mais sentida: familiares mortos e perseguidos, amigos presos, alguns ainda enlouquecidos pelas torturas, outros exilados, outros ainda mortos na guerra; os despedimentos, as privações, as humilhações morais, o horizonte fechado, o desespero sem luz, as opressões seculares - mas também a resistência longínqua do povo, o sofrimento e a luta, a esperança renovada no fundo da noite, finalmente a claridade. Foi assim o lento acordar do fundo da memória.
Mas a luz da manhã não foi imediatamente o nascer do dia. Demorava-se em abrir a porta gradeada. Hesitava-se em dar a liberdade por inteiro e a todos por igual. Foi, já no Portugal democrático, a primeira luta unitária vitoriosa: à [unta de Salvação Nacional dissemos - «ou todos saem ou continuarão todos em Caxias». E quando, quase 2 dias depois, as portas finalmente se abriram, foi o abraço da multidão, que com a sua força nos libertara. Aí houve, desde logo, maior lição do que milhares de páginas lidas: o valor da unidade e o poder do povo desperto, como as traves mais sólidas em que uma democracia pode assentar.
As pessoas que isto viveram não voltaram a ser as mesmas e o País também não voltaria, não poderia voltar a ser o mesmo.
Trajecto acidentado depois, com avanços e retrocessos, esperanças e desilusões, grandezas e desacertos, justezas e erros.
E hoje, 10 anos depois, vemos como estamos longe e como estamos tão perto do 25 de Abril!
Hoje pode ver-se como, para muitos, a política não é uma actividade com o objectivo central do bem de todos, mas campo fértil de ambições e interesses pessoais de alguns, e como alguns partidos, subalternizando o sentido nacional da sua acção, se transformaram em veículos de obtenção de influências e de conseguir rendosos negócios.
Pode ver-se como foram iludidos os que deram o seu voto aos que depois contra eles governaram e como tantas vezes se tem feito do governar um jogo permanente de grosseira mistificação ou um cálculo tecnocrático de gabinete sem a perspectiva social que, acima de tudo, o deveria orientar. Pode ver-se como aqueles que nas suas empresas se dispuseram a trabalhar honestamente, valorizando e enriquecendo o País, contrastam com os que vivem lautamente no submundo já hoje dominante da economia paralela, visando o máximo lucro imediato sem visão do seu futuro como empresários e muito menos do País, e como a corrupção campeia, já considerada natural, com total impunidade, por se saber que qualquer eventual inquérito administrativo terá o mesmo silêncio que todos os outros, e como a crise moral, a mais grave de todas as crises, vai corroendo inexoravelmente o País.
Pode ver-se como as aspirações de uma sociedade mais justa, com melhoria da situação das camadas desfavorecidas, deram lugar a desigualdades sociais cada vez mais marcadas e a sofrimentos cada vez mais dolorosos de grande parte da população, e como estão longe de alcançar os direitos fundamentais da habitação, da saúde, da educação.
Pode ver-se como, nos últimos tempos, por todo o lado e especialmente na função pública, recrudescem as perseguições e saneamentos por motivo das ideias, numa acção que do fascismo se distingue apenas pelo facto de pretender cobrir-se com uma hipócrita máscara legal, e como, limitando a liberdade, se vêem os mais poderosos órgãos de comunicação social estatizados serem ostensivamente manobrados pelos governantes, abafadas as vozes contrárias, projectada a criação de um inquietante serviço de informações, bloqueada a vida política, bloqueada a própria democracia, e o medo, que se quisera acima de tudo afastar da nossa terra, de novo aqui se fixa e alastra e, com ele, o obscurantismo, o envilecimento das relações sociais a todos os níveis.
Pode ver-se como a independência nacional cada vez mais se compromete, quer por interesses políticos quer por uma visão messiânica do papel dos investimentos estrangeiros, e como é humilhante para o País a subserviência dos governantes em face dos Estados Unidos.

Vozes do PS: - Não apoiado!

O Orador: - A democracia aberta em 25 de Abril tinha leis bem diferentes das da selva, pois a protecção dos fracos se deveria sobrepor quer aos interesses egoístas de pequenos grupos privilegiados quer aos de grandes potências estrangeiras, fossem elas quais fossem.
Como soa falso, ridículo até, nestas condições, falar-se em Estado de direito, quando, nem na substância nem sequer em muitos dos seus aspectos formais, ele é respeitado!
Encontramo-nos actualmente no pleno reinado da política politiqueira, da mediocridade, baça e absurda, num País sem rumo, sem sentido, sem nexo, num País que vive do e para o imediato, sem projecto, sem futuro, num País como que suspenso no tempo, adiado, em que pessoas e coisas se agitam sem saber para onde nem porquê, nem sequer como borboletas tontas atraídas por qualquer luz, mas na penumbra incaracterística, cinzenta, movendo-se em gestos lentos, macilentos, soturnos.
Vê-se como a pior anarquia não é a do tumulto, do vozear nas ruas, da exaltação apaixonada. A pior é a anarquia organizada, com a falsa aparência de ordem, como a que vivemos agora. É desta que, sobretudo, irrompem os antípodas da liberdade, os arautos de ordens novas, de estados novos.