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CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

Discurso que devia ser transcripto a pag. 524, col. 3.ª, lin. 23. do Diario de Lisboa, na sessão de 22 de fevereiro

O sr. Mártens Ferrão: — Não é sem admiração minha que vou continuar no uso da palavra n'uma questão toda ella de alta responsabilidade ministerial, na ausencia do governo! (Apoiados.) Não são estas as boas praticas do systema representativo; não são estes os precedentes, e as tradições d'esta casa! E o dever do governo era acatar essas tradições, era respeitar esses precedentes, era mais do que tudo, cumprir com o dever de governo constitucional, apresentando-se no parlamento quando n'elle se discutem as questões de alto interesse publico e de alta responsabilidade ministerial! (Apoiados.)

Não é a mim, que sou deputado da minoria, que compete dar remedio a factos d'estes, que se repetem todos os dias com assombro e com não menor sentimento meu; porque desejaria, fossem quaesquer que fossem as rasões de separação que eu tivesse do gabinete, desejaria, digo, que o governo do meu paiz, n'esta ordem de principios não faltasse ao cumprimento dos deveres constitucionaes para com o parlamento, mostrando-se superior a elle, demonstrando que a sua acção lhe é importuna, tendo-o em menos conta! (Apoiados.) Infeliz preoccupação, sr. presidente, que tão duramente tem sido expiada pelos governos que se têem lançado n'essa senda!

Não é novo, sr. presidente, nesta casa suspenderem-se as discussões até que esteja presente, o governo. E uma antiga pratica, usada mesmo quando não havia n'esta casa senão uma pequena opposição. Essa pratica perdeu-se e os negocios publicos são assim tratados á revelia e com o abandono do poder (apoiados). Não me incumbe a mim, mais do que registar o facto, com tanta mais energia, quanta reconheço bem que d'aqui fallo não sómente á camara, mas ao meu paiz. Eu registo o facto e o paiz que nos julga superiormente, fará a justiça devida á maneira por que os negocios de liberdade são abandonados pelos poderes publicos.

Declaro a v. ex.ª que não me considero á minha vontade, tendo de referir-me a questões de alta responsabilidade do governo na ausencia dos srs. ministros! Não é que eu tenha de dirigir ataques pessoaes a ss. ex.as, porque nunca o fiz nem espero faze-lo, sei que sem isso mais convenientemente se discutem os negocios do paiz. Mas é pelo principio do governo em si, que não é d'este ou d'aquelle ministerio, mas sim do estado, e que exigindo a discussão, não exime d'ella os representantes do poder.

Mas para que gastar tempo na expressão d'estes sentimentos, se tudo é inutil, se tudo é perdido!

Ponho de parte este incidente. O paiz o julgará!

Sr. presidente, na ultima sessão disse eu - que vinha levantar n'esta casa uma questão de liberdade constitucional; que vinha pedir a responsabilidade do governo o exigir d'elle que dissesse ao parlamento quaes eram os meios por que entendia dever pôr termo a uma questão tão gravo e tão importante, como aquella que se está agitando. Hoje continuo desenvolvendo esta mesma idéa.

E uma questão de liberdade constitucional aquella que se discute; é uma questão de liberdade politica, conquista a mais importante do systema representativo. É por isso uma das questões mais graves que pôde ser trazida ao seio do parlamento, e que elle deve apreciar completamente despreoccupado.

A questão afigura-se ao meu espirito como resumida no quadro que vou apresentar á camara.

De tudo quanto tem sido apresentado, de todas as reflexões que têem sido feitas, de toda a serie de documentos que foram mandados para a mesa e que estão publicados na folha official, de tudo quanto o paiz sabe e a imprensa tem registado, eu concluo que a questão deve considerar-se debaixo de tres pontos de vista.

Eu vejo actos administrativos, puramente administrativos, tumultuarios e offensivos das leis, praticados pela auctoridade superior do districto, completamente comprovados, porque constam dos proprios registos da administração, e cuja doutrina reaccionaria e absurda uma camara liberal deveria condemnar por acclamação! Isto para mim constitue um corpo separado e distincto que logo hei de apreciar, para d'elle tirar as consequencias que necessariamente se devem tirar em face do parlamento.

Vejo actos tumultuarios praticados junto da uma quando os cidadãos eram chamados a exercer o suffragio popular.

E vejo em relação a estes dois pontos, a questão de responsabilidade governamental, questão grave e importante; questão que eu necessitaria apreciar detidamente depois das explicações que entendo o gabinete deve dar ao paiz (apoiados).

A defeza já foi tambem esboçada, mas a que até agora tem sido produzida, na minha opinião, é contradictoria.

A primeira serie de factos a que me referi, foram julgados pelo illustre deputado que me precedeu na tribuna, como não sendo da competencia do parlamento. Entendeu-se que todos os factos da administração que envolveram as suspeições e as devassas politicas; a organisação illegal de uma commissão municipal; e a constituição tumultuaria de um tribunal administrativo, estavam vedadas á discussão parlamentar! E porque? Porque sobre a questão das eleições municipaes pendem recursos no conselho d'estado!

Por outro lado, os factos attentatorios da liberdade praticados junto á urna, foram confessados quasi todos pelo illustre deputado (apoiados); e pelos documentos que apresentou, pelas correspondencias a que deu inteiro credito, se mostra a quem a responsabilidade d'elles deve pertencer! (Apoiados.)

Os elogios feitos á auctoridade administrativa, para mim não servem de cousa alguma em face do parlamento, que não trata de elogios gratuitos, mas sim da apreciação dos actos de responsabilidade da administração. E quando esses actos estão patentes, quando elles estão completamente comprovados, quaesquer documentos gratuitos perdem de força, ou sejam contrarios ou sejam favoraveis ao funccionario. Temos documentos positivos e evidentes; é sobre elles que o parlamento tem de fazer o seu juizo e não sobre documentos gratuitos, que não podem destruir a força e a evidencia dos factos confessados pelas proprias auctoridades.

Por outra parte o illustre deputado, o sr. Guilhermino de Barros, que encetou este debate antes da ordem do dia, no mesmo dia em que elle depois foi aberto, não seguiu este caminho e ensaiou a demonstração dá legalidade dos actos praticados pela auctoridade superior do districto, era vista da portaria de 14 de agosto de 1840!

Mas ainda ha mais na defeza.

Ha o testemunho da propria auctoridade superior n'essa acta celebre e unica nos annaes da administração (apoiados) que está publicada na folha official, declarando ahi quaes foram os principios em que entendeu poder basear o seu modo de proceder, e entendendo que elle era auctorisado pelo artigo 234.° do codigo administrativo, que permitte ás auctoridades superiores dos districtos tomarem providencias extraordinarias nos casos omissos ou urgentes, dando immediatamente conta ao governo.

É, sr. presidente, em virtude d'esse artigo, modesto do certo na mente do legislador, e na indole do codigo e do direito administrativo, que aquelle funccionario superior do districto se julgou investido dos plenos poderes dictatoriaes para salvar o districto entregue aos seus cuidados, e assumiu assim a dictadura suprema, não em casos omissos e urgentes, mas contra as leis do estado e contra os principios sagrados do direito constitucional. Suprema salvação do estado que levou aquelle funccionario a abrir as syndicancias ou devassas juradas, para saber quaes eram as pessoas que mais influiam nas eleições; syndicancias que, se fossem exactas, dir-lhe-iam que eram os administradores dos concelhos os que mais haviam influido. Suprema salvação do estado, que se traduziu nas suspeições politicas contra os membros do tribunal administrativo; na organisação tumultuaria e intrusa d'esse tribunal; na arbitrariedade com que foram apresentadas umas excepções e outras não, a capricho da auctoridade do districto; e com que foi derogado o artigo 108.° do codigo administrativo na constituição da commissão municipal em Alijó; sendo nomeados para ella individuos que o não podiam ser, provavelmente porque aquelle artigo não foi julgado á altura das circumstancias extraordinarias que aquelle chefe de districto houve por bem assumir! - Mas tantas leis rasgadas, tantos principios desprezados e postos de parte; ia constituição esquecida, tudo isso ficou dependente da immediata conta ao governo e da sua approvação. Ao menos então ainda não tinha lembrado proclamar a incompetencia do governo para conhecer d'aquella resolução administrativa, para d'ahi mais tarde se chegar á desejada incompetencia parlamentar! O governador civil não pensou n'esta sophismação de defeza, e declara ahi n'esse documento a completa sujeição de tudo quanto havia feito á immediata approvação do governo!

Eis aqui como a defeza é tão tumultuaria e tão contradictoria, como foram os actos irregulares e attentatorios das leis, actos que eu combato, e que com assombro vi defender no parlamento de um paiz livre! Defeza tumultuaria e contradictoria, digo, que tende a negar ao parlamento a competencia para conhecer dos actos que violaram directamente a lei, o que offenderam os principios constitucionaes era que assenta o systema representativo. Eis-aqui o complexo e o resumo da defeza: por uma parte incompetencia para pedir a responsabilidade pelos abusos da lei; por outra parte reconhecimento d'essa competencia, e defeza das offensas da lei, e dos ataques ao principio da liberdade politica porque ha uma portaria de 1840! Portaria innocente que não tratou d'esta materia, mas que, quando tivesse tratado, seria o mesmo que se não o tivesse feito, porque não derogaria ella a lei fundamental do estado! E por outro lado ainda, não a negação da competencia, não a justificação dos factos, julgando-os legaes; mas sim a sua defeza como actos dictatoriaes e de suprema salvação do estado, para não se perderem as eleições municipaes de um concelho! Mas actos dependentes da suprema approvação e responsabilidade do governo.

Todo este apparato contradictorio de defeza era necessario para introduzir nas nossas praticas constitucionaes a lei dos suspeitos, que até agora só tinha a sua historia nos excessos da revolução ou nos abusos do absolutismo (apoiados), mas que passou agora a ser a norma de um bom regimen de administração.

Levada a questão a esta altura, pretende-se afinal adiar tudo até que sejam mandados documentos á camara, como se não estivessem ahi os documentos e as provas exuberantes de todos os factos praticados; documentos completos que certificam a verdade des factos; documentos authenticos extrahidos dos proprios registos officiaes da auctoridade administrativa (apoiados).

Sr. presidente, é tarde para adiar (apoiados); em face de um parlamento não se afasta uma questão de liberdade! (Apoiados.) Era frente de um paiz livre quem ha que possa adiar uma questão de liberdade (muitos apoiados), quando tem havido factos claramente provados, manifestamente demonstrados, pelos quaes foi offendido o direito politico mais importante dos cidadãos — o direito de votar?

Sr. presidente, quando se conhecem estes factos, quando são conhecidos de todo o paiz, quando a imprensa se tem occupado largamente d'elles, quando foram presenciados por um districto inteiro, querer forra-los á discussão, é não comprehender a indole do systema representativo, que se baseia todo na publicidade, na discussão e na responsabilidade!