19 DE JANEIRO DE 1956 709
em 1386, no oratório de Filipe, o Ousado, o primeiro tratado de comércio entre a Flandres e Portugal; em Bruges, na praça ogival dos Agostinho», surgia a primeira feitoria portuguesa; depois, com o assoreamento do Zwyn e o declínio da Veneza flamenga - mais tarde convertida na Bruges Ia Morte, de Rodenbach - nova feitoria de Portugal se instalava em Antuérpia - mercatorum emporium -, num palácio do Kipdorn, agora Avenida da França, a que logo foi concedido o privilégio da extraterritorialidade, - ao mesmo tempo galeria de arte e casa de comércio academia de filólogos latinos s grande escola da diplomacia portuguesa do século XVI. Aí nasceu, nessas vastas salas armadas de tapeçarias, no convívio dos potentados da - banca internacional - os Fugger, os Welser, os Galterotti, os Bouvisi, os Spinola -, vendo passar pintores-diplomatas,
mercadores-filósofos, príncipes-mecenas, feitor resletrados,
doutores-magníficos, o brilhante movimento da cultura luso-belga, já velha de cinco séculos, cuja história acaba de ser enriquecida pela assinatura do presente. Acordo, agora remetido para ratificação à Assembleia Nacional por um representante excelso das mais altas e mais nobres tradições universitárias portuguesas, - o Sr. Prof. Paulo Cunha, Ministro dos Negócios Estrangeiros.
5. Em regra, as Convenções políticas ou político-económicas dirigem-se a realidades eminentemente actuais. Não têm passado, ou o seu passado não interessa. Pelo contrário, as Convenções ou Acordos culturais constituem o produto não só de necessidades presentes, mas de razões históricas e tradicionais cujo conhecimento importa a sua perfeita compreensão,
porque representam, em geral, para as Altas Partes contratantes, um título de orgulho e uma. vasta capitalização de experiência. Para se ter a noção exacta da sua significação e do seu alcance é preciso olhar para trás. Será o presente que os aconselha; mas é o passado que os justifica. O Acordo cultural entre Portugal e a Bélgica, se o não abonasem fortes razões de política pragmática (respectivas sobretudo à nossa vizinhança no continente africano e à consequente necessidade de uma colaboração estreita para o estudo de certos problemas comuns), bastaria o deslumbrante panorama de cinco séculos de intercultura para o justificar. Evidentemente, esta Câmara tem de emitir um parecer e não - o que seria demasiado ambicioso - de escrever um ensaio sobre os relações entre Portugal ff a Flandres nos domínios da arte, da ciência, da literatura e dos actividades universitárias. Algumas referências, porém, a factos mais relevantes ou mais típicos bastam para acentuar o carácter de opulência, de variedade e de continuidade do nosso convívio e do nosso contributo comum para u história da cultura europeia. E conhecida a influência que a arte flamenga exerceu sobre a pintura portuguesa do século XV, mormente desde que João van Eyck esteve em Lisboa, em 1429, como membro da embaixada de Filipe, o Bom, que veio buscar a filha de D. João I, futura duquesa de Barganha. Do contacto que o mestre da Adoração do Cordeiro Místico estabeleceu com os - nossos artistas, então, segundo parece, sob a influência italiana de mestre António Florentim, resultou a revolução da técnica - esplendor de colorido, perfeita distribuição do« volumes e dos valores, observação meticulosa do documento humano - que havia de tornar possível, pouco depois, o caso genial e Nuno Gonçalves. O parentesco das duas pinturas acentuou-se com a permanência de Bernardo van Orley em Portugal; com a forte impressão produzida entre nós pela arte de Memling; com as sucessivas encomendas do obras de mestres flamengos feitas pela nossa feitoria do Bruges; com a execução, nas oficinas dos tapeceiros de Bruxelas e de Tournai, de panos de armar tecidos sobre cartões de pintores portugueses (tapeçarias de Arzila, magistralmente estudadas num trabalho notável pelo presidente da Academia Nacional de Belas-Artes, Sr. Prof. Reinaldo dos Santos). Conhecem-se também, e são particularmente brilhantes - em especial no período áureo da Renascença -, as relações interuniversitárias dos dois países. Enquanto Nicolau Clenardo, mestre flamengo, latinista, belenista, hebraísta, arabista, vem dirigir em Portugal os estudos do futuro cardeal D. Henrique, pelos claustros e pelas arquibancadas 'da Universidade de Lovoina passam, admiráveis de dignidade, as figuras tutelares de André de Resende, de Frei Brás de Braga, do franciscano Roque de Almeida, de Frei Diogo de Murça, futuro reitor da Universidade de Coimbra, de Damião de Gois, filólogo, diplomata, historiador, músico, hóspede e amigo dilecto de Erasmo, herói que numa hora grave - o cerco do Lovaina pelas tropas de Francisco I - organiza a defesa da cidade e (tão grande era o seu prestígio!) assume as responsabilidades do governo com o conde de Vernemburgo e o bailio do Brabante. Damião de Gois'! Vemo-lo nn casa de Anderlecht quando Erasmo Roterdamo consagra o seu Crisóstomo ao rei D. João III; em Antuérpia, na oficina de Cristóvão Plantino (hoje Museu Plantino-Moreto), ajudando o célebre impressor a plantar a vide simbólica que derramou - na Europa o «vinho da sabedoria»; finalmente, em Lovaina, recebendo o título de nobreza e a carta de brazão dos mãos de um rei-de-armas de Carlos V. E a literatura? Quem ignora que Bruxelas, assistindo por duas vezes à representação de obras dê Gil Vicente, abriu - ao teatro português as portas do Mundo? Em 1030 foi o Auto da Lusitânia, levado à cena na Embaixada de Portugal, perante toda a corte, como refere André de Resende no Genethliacon; um ano depois, em 1031, outra peça vicentina, hoje perdida, Jubileu de Amores, cujo «erasmismo» suscita amargos comentários ao legado do Papa Clemente VII. E o jornalismo? Quem precioso da hemerografia nacional?
6. Mas, já o dissemos: a intercultura luso-flamenga não é apenas uma tapeçaria histórica destinada a guarnecer as paredes de um- museu. É uma realidade viva. E uma actualidade fremente. Sem prejuízo do seu idealismo cristão, que nele mantém intacto o culto do passado, o hércules loiro do Brabante, laborioso e tenaz, realiza a sua missão civilizadora construindo duramente, àsperamente, o futuro. Um contraste inesperado, surpreende quem chega hoje n Antuérpia: ao lado da alta torre gótica da catedral, maravilha de elegância e de espiritualidade, erguem-se os vinte e três andares do maciço e moderníssimo Boerentoren, um dos primeiros arranha-céus da Europa. Toda a Bélgica está ali, nesse contraste que é um símbolo, nessa aliança que é uma força. Ao tranquilo fulgor das velhas cidades da Renascença, trípticos de pedra em que há sempre um município, uma catedral e um castelo, respondem hoje, na zona do ferro e do carvão, em Liège e em Charleroi, o clarão vermelho e ciclópico dos altos-fornos, as instalações -gigantescas da grande metalurgia, os fábricas eriçadas de chaminés como florestas, os portos, as docas, os bairros mineiros, as cidades operárias, o Mundo agitado, metálico, estrepitoso, vertiginoso que Verhaeren cantou nas Forces Tumultwenses e nas Villes Tentaculares. Novos interesses da vida e da cultura vêm, não substituir-se aos antigos, mas associar-se a eles. Já não há apenas Universidades clássicas; há Universidades do Trabalho. Em 1908 o Mundo assiste ao singular es-