DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 117 334
A vida tem um curso de sentido vário, em meio de um condicionalismo que anda longe da uniformidade, é um imenso caleidoscópio de situações e onde a condição das pessoas é naturalmente desigual e quantas vezes inconstante, e não há que camuflar, passe o termo, a evidência mesma, usando, num puro convencionalismo, processos artificiosos ...
Mas então o cinema há-de ser simplesmente a imagem fiel da vida toda, numa absoluta passividade de retratação, por completo alheio à interferência de juízos valorativos, não hesitando mesmo em ser um instrumento ao serviço da apologia e do derramamento do mal? A resposta tem de ser decisivamente negativa.
Nesta matéria, Sr. Presidente, como, de resto, em tudo o que toca à órbita da acção da pessoa humana, sua vida terrena, anteparo, aperfeiçoamento ou salvação da sua alma, é inconfundível e definitivo o supremo conceito do venerando chefe da Igreja, S. S. o Papa Pio XII:
Uma coisa é conhecer os males, pedindo à filosofia e à religião a sua explicação e remédios; outra coisa é toma-los por objecto de espectáculo e distracção. É altamente condenável que a perversidade e o mal sejam oferecidos em razão de si mesmos - se o mal representado vem a ser, ao menos do facto, aprovado; se é descrito em formas excitantes, insidiosas e corruptoras; se, é apontado àqueles que não estão ainda à altura de o dominar e de lhe resistir.
Admite-se que o filme possa representar o mal, mas que o faça com intentos sérios e formas convenientes, de tal modo que presenciá-lo ajude a aprofundar o conhecimento da vida e dos homens e a melhorar e elevar o espírito. Que o filme evite toda a forma da apoteose do mal e mostre reprová-lo no decurso de toda a representação, não bastando que o faça só no fim.
Quem dera, Sr. Presidente, quem dera que a consciência de certos industriais da cinematografia, cuja missão poderia subir tão alto na escala da dignidade, enriquecendo os inegáveis e amplos efeitos sociais da sua actividade, fosse alertada pela infalibilidade das pertinentes advertências e sábios conselhos encerrados nas palavras que sempre fielmente traduzem e indicam com segurança o verdadeiro caminho, a verdade e a vida, na exaltação do bem, da beleza e, da virtude.
Sr. Presidente: reverto ao sentido das minhas considerações iniciais para formular, em rápida síntese, algumas dúvidas, exteriorizar determinadas inquietações, levantar breves reparos, exprimir gerais anseios e também, o que é para mim motivo de redobrado gosto e natural júbilo, manifestar sinceros sentimentos de justiça e de aplauso.
Dúvidas, sérias dúvidas, Sr. Presidente, quanto ao modo como em algumas terras, que eu saiba, da província estão a ser observados a doutrina e os princípios da salutar orientação contida no Decreto n.º 38 904, a que atrás fiz referência. Sei, por idóneas e seguras informações, serem objecto de fraude e a bem dizer considerados como letra morta!
Levanto o alarme, invocando a presta actuação dos agentes fiscalizadores, porque as leis fazem-se para serem cumpridas. E esta cruzada da defesa da higiene física, e não menos higiene mental e moral da iiossa juventude, não deve comportar omissões, não legitima indiferenças, nem pode conformar-se com subterfúgios e tem de repudiar habilidades capciosas.
Pois é consabido que o cinema, como faca que é de dois gumes, se pode ser instrumento de sadio recreio, de agradável distracção, de formação moral, de difusão da arte e da cultura, tem, ao contrário, o grave perigo de ser, quando andam arredios os escrúpulos no espírito de quem o realiza, pernicioso agente de perversão de sentimentos, veículo de desmoralização, causa de desequilíbrio da sensibilidade, de perturbações nervosas e - o que é bem pior - já com a sua posição, como está comprovado, marcada a negro, sinistramente assinalada na estatística dos casos provocadores do acréscimo de volume da delinquência e criminalidade infantil e juvenil.
Faça-se cumprir, portanto, em todo a sua extensão e inexoravelmente, a lei, dado que alguns pais, infelizmente, não sabem ser pais. Inquietações e reparos. Sr. Presidente, pelo facto de ser possível a afixação de reprováveis cartazes, em que a licenciosidade é manifesta e os quais não podem deixar de impressionar fortemente e de forma altamente nociva a natural viveza de imaginação de quem, pela verdura dos anos, não terá a fortaleza de compleição moral que resista à aliciação de certas sugestões . . . Solicito também a quem de direito que não haja afrouxamento na observância das adequadas medidas de prevenção e de repressão.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Ainda levanto a, minha estranheza e marco a minha reprovação com base na circunstância, que profundamente me choca e é per completo incompreensível e inadmissível, de em espectáculos cinematográficos designados de «sem classificação especial» serem, por vezes, interpostos certos anúncios e, o que é pior, fazer-se a apresentação - e de que modo! - de novos filmes, os quais, pelas suas características, estilo desintegrados e contrastam gritantemente com a natureza específica daquelas sessões de cinema. Há que evitar, a todo o transe, a continuação de tais irregularidades, que são desvios e infracções flagrantes ao verdadeiro sentido da lei.
Anseios, felizmente, já mitigados pela adopção do avisados preceitos governamentais, a que adiante farei referência, em ordem a que, com o auxílio do Fundo do Cinema Nacional, se quebre a raridade, a bem dizer quase inexistência, de apresentação nos ecrans das nossas casas de espectáculos de filmes do denominado cinema infantil, cuja exibição a lei prevê e em função da qual sei haverem sido já feitos contactos com o estrangeiro, na busca de campos de observação e indagação de meios de estudo, contactos das quais resultou, ao menos, a publicação dum brilhante relatório, firmado por mão de mestre, da autoria do Sr. Dr. Eurico Serra, ilustre director dos Serviços Jurisdicionais de Menores, contendo alvitres é pontos de vista perfilháveis.
Se autorizados pedagogos e psicólogos atestam que na criança, desde tenra idade, desabrocha a sua capacidade de entendimento e de compreensão, logo experimentando, nas primeiras etapas da vida, certa gama de sentimentos e de emoções, com a acumulação de traços definidores da sua futura personalidade; se o cinema seleccionado posto ao serviço do enaltecimento e projecção dos altos sentimentos, das nossas melhores tradições, do génio específico da raça e dando a conhecer os nossos costumes, os feitos dos nossos grandes homens, os nossos monumentos artísticos, os padrões da nossa história e a beleza das nossas paisagens pode constituir, efectivamente, pelos seus predicados de forte sugestão, elemento formativo do espírito; se o bom cinema, repito, Sr. Presidente, pode ser em meio do desolador panorama nacional da falha de razoáveis motivos de distracção para os nossos filhos, com honrosa excepção, que eu saiba, para a Câmara Municipal de Lisboa, para a organização do Teatro de Mestre Gil,