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26 DE MARÇO DE 1965 4629

chegar um pouco tarde», afirmou o ilustre visitante, num incentivo para despertar de consciências, que eu traduziria assim por amor de Deus, não espetam só por Deus.
Seja como for, trata-se de uma afirmação exacta no seu conteúdo íntimo, expressa por Nhor Deus tâ dâ - o Senhor Deus dará -, que se ouve a cada passo na boca da minha gente de Cabo Verde e que e exterioriza um estado de alma que o observador perscrutou - estou certo de que apenas por aquilo que viu e sentiu sem ter ouvido sequer a frase -que não lhe seria fácil de traduzir -, embora seja comum no crioulo que tudo espera efectivamente de Deus.
Descrença nos homens? Indiferença? Conformismo? Resignação?
«Batidos frequentemente pelas crises, abandonados muitas vezes a um destino cruel, acabou por se formar neles um certo tipo de mentalidade», informa o Dr. Ilídio Amaral, na sua notável tese de doutoramento na Faculdade de Letras de Lisboa, recentemente publicada sob o título Santiago do Cabo Verde - A Terra è os Homens -, atribuindo essa mentalidade a factores vários, alguns dos quais a história das ilhas regista e as estatísticas reproduzem, esclarecendo o estudioso atento.
Ora, há que lutar contra este estado psíquico do homem cabo-verdiano. Há que reagir e dar uma sacudidela na morbidez do ambiente, na fatalismo criado, substituindo-os pela vontade forte de encontrar soluções e efectivá-las.
É preciso não deixar que domine em alguns o comodismo fácil e noutros a descrença que o passado poderia justificar pela crueldade do destino.
Esse passado já não conta.
Verbas substanciais para o fomento nas ilhas implicam confiança nas perspectivas que se nos apresentam e que temos de aproveitar em trabalho reprodutivo.
Factos bem recentes comprovam ser possível enfrentar as secas e vencer as suas consequências. O exemplo da de 1959-1960, em que foram tomadas medidas a tempo, com notável previsão, atesta que a vontade do homem foi capaz de evitar uma hecatombe semelhante às que a precederam, reflectindo-se no crescimento explosivo de uma população que, em regra, era ceifada pela fome, com um decrescimento que os números estatísticos documentam na sua dolorosa frieza.
Tudo isto significa que já não pode haver mais noites por manição em Cabo Verde.
Mas é preciso fazer alguma coisa para que o homem cabo-verdiano mude a sua maneira de ser. É preciso incutir nele a fortaleza de ânimo, a certeza no dia de amanhã, criando-lhe condições de trabalho e de subsistência permanentes.
Por isso eu tenho aqui insistido na indispensável continuidade dos empreendimentos com planos definidos, de forma a garantir não só a sua conclusão e eficiência, como também o pão de cada dia ao homem cabo-verdiano.
As secas são previsíveis. Há um plano rodoviário aprovado por decreto. Outros planos existem e outros se podem preparar capazes de evitar soluções de emergência. Por isso, eu insisto na imperiosa necessidade da prevenção tempestiva, para que as chamadas «obras de crise» não sejam atabalhoadas e inúteis para a grei, contribuindo, ainda por cima, para uma mentalidade de desalento e de desinteresse que a improvisação e a incerteza de sobreviver poderão justificar, não dando o trabalhador o rendimento desejado, pois chega-se à organização de turnos por semanas, para trabalhar aqui ou além, com salários mínimos, a manter uma alimentação deficientíssima, muitas vezes a retardar a morte, sem consentir a energia reprodutiva que seria normal.
Nada disto é hoje justificável, perante o esforço gigantesco da Nação para o desenvolvimento de Cabo Verde.
Não é, porém, só ao Estado que compete o impulso para a viragem que se impõe Incumbe também aos corpos administrativos e aos sectores privados do comércio, da indústria e da agricultura prover aos apuros constantes do trabalhador, não se servindo dele apenas em determinadas épocas, para os abandonar depois à sua sorte. Embora o Estado seja o maior responsável num território onde a necessidade da obra pública é premente, a verdade é que as actividades privadas têm de dar o seu contributo para acabar com um estado psicológico que o cabo-verdiano aliás só patenteia na sua própria terra.
Porque vencem eles na América? Porque dão conta de si no Brasil? Porque são estimados na Holanda e na França, apesar de todas as dificuldades de clima e de ambiente? Porque se adaptam em Angola e na Guiné, onde têm deixado o seu próprio sangue? Porque os encontrei em Moçambique, cheios de entusiasmo de viver, prontos a defender também ali o solo sagrado da pátria comum?
Porque, além de esperar de Deus, contam ainda com os homens e consigo próprios. Sabem que o seu esforço é compensado e que amanhã também será dia.
Ora, porque não criar ao cabo-verdiano nas suas ilhas idênticas condições de esperança e de fé, sem os afastar de Deus, evidentemente?
Tem de haver uma reacção.
Para isso o trabalho certo e uma alimentação suficiente são elementos decisivos.
Crer em Deus? Sem dúvida. Mas há que lembrar ao cabo-verdiano que Deus não mandou que tudo se esperasse d'Ele. O homem deve fazer quanto as suas forças lhe consentem Deus aparece para suprir as nossas deficiências. Esperar que Ele venha fazer aquilo que nós podemos fazer pelas nossas próprias forças é cometer o pecado que em teologia se chama a «tentação de Deus»
«Põe a mão que Eu te ajudarei», diz a sabedoria popular, baseada certamente em tais princípios que a parábola dos talentos confirma com o castigo do servo preguiçoso e a recompensa dos bons.
«Ninguém opera milagres se Deus não estiver com ele», mas é indispensável criar no homem cabo-verdiano também confiança em si próprio, de modo a interessá-lo na tarefa a realizar, para que a execute convicto de que os talentos da parábola se reproduzirão em seu benefício e da comunidade cabo-verdiana de que faz parte.
«Nhor deus tâ dâ traduz um estado de resignação, explicado certamente por factores como má alimentação, paludismo, alcoolismo consanguinidade, higiene deplorável, escassez de conforto religioso e espiritual, miséria explorada por abusos de toda a ordem que se hão-de repercutir, fatalmente, no temperamento e no carácter», conclui o Dr. Ilídio Amaral na sua dissertação já citada.
(Daí um nível de vida baixíssimo, sem interesse, sem estímulo, sem evolução, sem progresso, numa apatia confrangedora e angustiante.
É contra tudo isto que temos de lutar.
Difícil? Não duvido que será.
Contudo, a persistência dos responsáveis, a orientação nas igrejas e nas escolas, a constância no trabalho, a garantia da cachupa do dia seguinte, não só a permitir-lhe satisfazei as necessidades primárias como a criar-lhe outras que o estimulem à exigência e cobertura dos requintes da civilização, são alavancas capazes de levantar o homem cabo-verdiano da letargia em que caiu nas suas ilhas madrastas.
Este é o meu apelo de hoje, que dirijo a governantes e governados.
Poesia? Sonho?