1142 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 62
sem seus iguais, ter-lhes-iam levado em troca das suas riquezas locais a charrua e a roda, os géneros necessários para a produção. Se a isso tivessem acrescentado a instrução e a formação profissional, a arte simples de treinar bois para o trabalho, em lugar de procurarem apenas escravos e um benefício fácil, a situação da África de hoje seria certamente muito diferente.
Não tenhamos, porém, ilusões. Só por si, a difusão de novos métodos de trabalho e novos auxiliares do braço do homem, sem uma declaração de guerra à tradicional organização da propriedade tribal, estarão votados ao mais seguro fracasso. D. João II, numa das primeiras embaixadas do rei do Congo, enviou a este:
pedreiros e carpinteiros com as suas ferramentas, prontos a avançarem, lavradores com as suas enxadas e charruas, seguidos por mulheres com bacias e selhas preparadas para demonstrar como se fabrica o pão.
A rotina a vencer era e continua a ser a da ausência do pacto entre o homem e a terra, que se chama propriedade. Porém, a terra, mesmo quando rica, exige drenagens, enxugos, fertilizantes, medidas antierosivas, investimento de sacrifício a que só a continuidade de um propósito assegura a sedução.
Aos que consideram a propriedade colectiva como superestrutura da individual, objecto que ainda não foi demonstrada a superioridade da granja colectiva sobre a herdade individual. É que, de qualquer modo, a instituição definitiva em África de formas colectivistas de domínio representaria um efeito sem causa. Além disso, defendo a instituição da propriedade individual, porque considero esta forma o caminho mais curto para o pacto de amor entre o homem e a terra, que a lição dos séculos representa como o primeiro motor do progresso. Nesta medida, repito, vale a pena remar contra a maré de uma tradição de que se tem exagerado o significado.
Alguns exemplos, ao arrepio desta tradição, demonstram que o Africano, sempre que se lhe proporcionou ser dono exclusivo de um pedaço de terra, nele se fixou e nele investiu o ser suor. É o caso de vários pontos do litoral da província, em especial dos distritos de Moçambique (Lunga, Lumbo, Mossuril e Matibané), Zambésia (Quelimane) e Inhambane (Inhambane, Maxixe e Morlumbene), em que os vizinhos das antigas regedorias são donos efectivos da terra, embora sem título legítimo que lhes não advenha da posse imemorial, de tal modo que correm pela comarca de Inhambane acções judiciais em que essa posse é confrontada com títulos jurídicos conseguidos por europeus pouco escrupulosos, enquanto a retenção efectiva da fruição das benfeitorias agrícolas - palmeiras, mangueiras, cajueiros, etc. - não raro tem sido assegurada pelos seus possuidores africanos com recurso a medidas que não excluem a violência, sob o olhar entre tolerante e cúmplice da autoridade que não foge à força moral de uma posse de tão longa data.
E é consolador verificar que nos pleitos pendentes os pleiteantes africanos invocam exactamente os direitos que lhes advém da valorização da terra através da plantação de árvores de rendimento e não raro a natureza hereditária desses direitos.
O milagre fê-lo a árvore de grande porte, que representa suor e vence a transitoriedade das culturas anuais.
Exemplo frisante é ainda o da propriedade suburbana da Matola e da Machava, onde o simples título de domínio operou o trânsito da palhota maticada para a casa de alvenaria.
Dir-se-á, pois, que o Africano é tão sensível ao amor à terra e tão permeável ao sentimento de domínio, como qualquer outro utente dela. Mister é que se lhe criem condições para que a valorize e a explore como coisa seguramente sua, da qual ninguém poderá espoliá-lo. Essa certeza não lhe será dada tanto pela emissão de um título jurídico como pela confiança que lhe mereça esse título.
E reconheçamos dando-se-lhe terra, muita terra, mais terra do que a que cabe na força do seu braço, nada se lhe dará que no dia seguinte não sobeje, e pede-se-lhe a devoção de uma vida. E este o mais rendoso e aliciante dos «negócios», porque tentável à escala de mobilização afectiva de milhões de braços. Na verdade, é sabido que o nativo não gasta a totalidade do seu tempo nas actividades relacionadas com a produção dos próprios meios de subsistência, pertencendo ao homem as tarefas de derrube - quase sempre incompleta e secundada pela mortífera queimada -, da pesca e da caça, incumbindo à mulher, em regra, os trabalhos propriamente agrícolas da sacha, armação da terra, sementeira e colheita. Este quadro é ainda a regra para a quase totalidade do território de Moçambique, embora deva considerar-se ultrapassado nas regiões ao sul do Save.
Enquanto isto, o agricultor europeu trabalha mais tempo, aliás ajudado por moderna maquinaria e utensilagem, que multiplica a produtividade do seu trabalho. A diferença, com a natural correcção do condicionalismo ecológico de um e outro meio, representa o caminho a percorrer e, ao mesmo tempo, o prémio a tentar.
Como o tentaremos?
Em matéria tão afastada da minha preparação especializada não se me levará decerto a mal que enumere apenas sugestões pessoais que aos, competentes caberá apreciar e corrigir.
Em tese geral já esbocei o meu pensamento; penso que o título de proprietário poderá representar a centelha explosiva do prodigioso arsenal de trabalho de que dispomos. A posse jurídica da terra pode bem representar o ovo de Colombo de que precisamos para operar o transito da expectativa da natureza para o domínio efectivo dela.
Quando se reconheceu ao «indígena» de há pouco o estatuto da plena soberania, na maioria dos casos não se lhe melhoraram as condições de vida. Mas eu sei com que satisfação a maioria dos nativos recebeu essa nominal emancipação jurídica e com que orgulho a invoca. Mas não nos iludamos, há que realizá-lo como cidadão. Pois bem o investimento dele na posse jurídica da terra, a dignidade de proprietário, em suma, viria reforçar essa consciência da própria maioridade - cidadão português.
Quando ele foi investido na posse jurídica de um talhão suburbano, superou a palhota e fez prodígios para edificar o seu sobrado. Esperemos que outrotanto aconteça quando dispuser, como de coisa sua, de propriedade fundiária.
Sei que a terra é apenas o ponto de partida e que o seu aproveitamento exige capital de investimento, técnica, etc.. O meu ponto de vista é, porém, o de que, desde já, se dê ao nativo o que em abundância temos para lhe dar, criando condições psicológicas propícias ao total investimento do seu braço. Que se complemente esta atitude com a assistência possível, mas que se a não enjeite, mesmo despida de todo e qualquer complemento.
De qualquer modo, não exageremos o fatalismo da rotina. A maior parte do armentio pecuário é propriedade dos africanos. Porque se lhes não concedem lotes de terreno para o seu pascigo, tal como se fez para os europeus? Há terra de ninguém coberta de árvores que são pertença de africanos, que as plantaram e as exploram por