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10 DE FEVEREIRO DE 1968 2415

Trata-se de cláusulas testamentárias de dois outros generosos benfeitores da Misericórdia do Porto, que foram o barão de Nova Sintra, instituidor do estabelecimento humanitário que tem o seu nome, e José Monteiro dos Santos, com cuja fazenda a mesma Misericórdia construiu os chamados «hospitais menores».
O primeiro estipulava que «as mesas da Misericórdia administrarão e conservarão, in perpetuum, o estabelecimento e seus bens», o que exclui a possibilidade de sem subversão de princípios legais ou sem violência, a irmandade ser privada de tais conservação e administração.
O segundo foi ainda mais explícito ao dispor que «o estabelecimento será entregue, bem como os seus capitais, à Santa Casa da Misericórdia do Porto, se se verificar a condição da sua existência autónoma, pois se, em qualquer tempo, a mesma Santa Casa deixar de existir ou for englobada no Estado e for administrada como simples instituto de assistência pública oficial, o referido estabelecimento não acompanhará a sorte desta Santa Casa e passará a funcionar com os seus rendimentos sobre si e como estabelecimento independente».
Eis, Sr. Presidente e Srs. Deputados, quão grande é a responsabilidade e a honra que impendem sobre a Misericórdia do Porto, e quais são as luzes que iluminam o seu caminho, e quais os comandos jurídicos, morais e históricos que vinculam a sua acção e o seu comportamento.

Vozes: - Muito bem !

O Orador: - Mas voltemos ao tema específico destas -N considerações.
De posse do traslado do testamento de D. Lopo, a Misericórdia cumpriu-o escrupulosamente, começando por transferir para a capela-mor da sua igreja os restos mortais do insigne benfeitor.
Quanto aos doentes, começaram a ser tratados num velho hospital, enquanto não se instituía o de D. Lopo, que veio a ser instalado em dependências da velha albergaria de Rocamador.
A afluência dos infelizes carecidos de tratamento foi sempre aumentando, de tal sorte que as mesas da Misericórdia, embora carecidas de meios, mas confiadas na Providência Divina, iniciaram, cautelosa e comedidamente, a construção do novo hospital.
Entretanto, um rico portuense, de nome Manuel Fernandes, falecido em Ormuz, legou à Misericórdia uma grande fortuna, que, com o acréscimo de outros legados de vulto, permitiu a conclusão do novo hospital na esquina das Buas dos Caldeireiros e das Flores, o qual ficou com capacidade para recolher entre 150 e 200 doentes. Isto, nos começos do século XVII.
Mas o Porto crescia. Além disso, ao hospital acorriam infelizes de todas as partes do País e, até, do estrangeiro. A todos a Misericórdia atendia, conforme a natureza das necessidades.
Nos meados do século XVIII a Misericórdia já possuía sete estabelecimentos de bem-fazer, mas não descansou no seu desejo de acolher todos os necessitados, todos os que a procuravam para minorar sofrimentos, todos os que se pudessem considerar beneficiários da caridade cristã, traduzida na prática das obras de misericórdia corporais e espirituais, que tal era a razão de ser da sua criação e da sua existência.
O Porto albergava, então, mais de 60 000 almas e já era, sem contestação, no dizer de um escritor coevo, a segunda cidade do reino, «na riqueza, na dignidade e na grandeza».
Já nessa época se podia aureolar com os epítetos de «cidade do trabalho e da caridade», que o grande Padre Américo viria a consagrar com a, sua sentida exclamação: «meu Porto, meu Porto, quão tarde te conheci!»
Só uma cidade assim podia possuir uma instituição da grandeza da sua Misericórdia.
E só uma Misericórdia tal podia tomar a arrojada decisão de mandar construir um hospital no qual coubessem tantos doentes quantos o procurassem - um novo Hospital de D. Lopo, mais gigantesco e imponente.
Empolgados com tal ideia, os mesários na sessão de õ de Fevereiro de 1769, deliberaram mandar colocar o projecto e dispor a quantia anual de dois contos de réis para as obras, declarando, textualmente, como se vê na acta, que essa importância, suposto que limitada, é contudo, suficiente para incitar os ânimos devotos a concorrerem com as suas esmolas, como tem mostrado a experiência nesta cidade.
Foi encarregado da feitura, do projecto o arquitecto inglês John Carr, que o ultimou em Outubro de 1769, declarando que o rei de Inglaterra o tinha visto com admiração e aprovação.
Era, realmente, um assombro, justificando perfeitamente as 500 libras do seu custo.
A primeira pedra foi lançada em 15 de Julho de 1770, com a solenidade e brilho festivo que extasiaram toda a população citadina, transbordaste de júbilo ë orgulho.
Foi-lhe dado como oráculo o grande português Santo António, que, por ser taumaturgo, havia de fazer o milagre de suscitar nas almas generosas as ajudas necessárias ao bom termo da grandiosa edificação.
Essa fé não foi iludida, pois de toda a parte afluíam dádivas, legados, doações, heranças, especialmente de portuenses estabelecidos no Brasil.
Como é natural, num empreendimento de tal vulto houve altos e baixos, num afã laborativo. Em dado momento, um irmão benemérito tomou à sua conta todas as despesas da obra durante quinze dias.
O orçamento era de dois milhões de cruzados, mais de 100 000 contos de hoje, mas os encargos agravavam-se com o decurso do tempo.
Lucidamente, o hospital ia-se construindo por partes, de modo a que o funcionamento não dependesse do acabamento integral.
Ora, quando as obras estavam quase concluídas, ocorreu um episódio gravíssimo, que parece de hoje, e que reputo muito oportuno relatar aqui:
Em 1843, o Estado liberal era devedor à Misericórdia da elevada quantia de 434 509$367 réis. Como as solicitações feitas ao Governo para solvência de tal dívida estavam sendo vãs, a mesa dirigiu uma exposição à Câmara dos Pares.
Então, o Governo, além de não pagar, intentou chamar a si a administração das Misericórdias, o que provocou inaudita celeuma e clamorosos e generalizados protestos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Como imediata consequência, os legados dos benfeitores cessaram, pelo que as obras estiveram paradas durante largos anos.
Foi essa a primeira investida do Poder Central contra a autonomia e independência das Misericórdias.
Felizmente, a violência não se consumou. Com a acalmia dos ânimos, também a generosidade, temporariamente estancada, novamente abriu as comportas e se exprimiu em caudalosas correntes de donativos, serviços e outras ajudas, como para compensar o tempo perdido por culpa do Estado.