31 DE JANEIRO DE 1969 3055
terizar esse admirável idioma em que D. Sancho I, logo no começo do século XII, cantava a sua balada
Ay eu coitado! Como vivo
em grau cuidado por meu amigo
com vinte e tal palavras diversas, todas elas singelas quanto à forma e à essência, mas todas elas já eram então como são hoje, no dizer de Carolina Michaëlis de Vasconcelos.
As línguas não são imutáveis, vão-se formando através dos tempos, evoluem, por um lado, como consequência das condições históricas dos povos que as falam e, por outro, do desenvolvimento sociológico da comunidade humana.
O estudo e análise da formação e da evolução do português falado c escrito, desde o alvorecer da nacionalidade, para cuja criação e individualização, repito, contribuiu decisivamente, mostra-nos que a partir da fragmentarão linguistica da Península Ibérica e da cisão do galego e do português, enquanto aquele permanecia, estático, como que língua morta, a nossa adquiriu a expressão de idioma político, que os Descobrimentos haviam de universalizar.
A expansão de Portugal no Mundo fez-se com a vontade, a energia e a heroicidade dos marinheiros, dos soldados, dos missionários e dos comerciantes, mas não ficou a dever menos à língua por eles falada e transmitida aos povos descobertos. Muitos a conheceram e falaram, outros a adoptaram e dela ficaram raízes profundas, como em mais de conto e cinquenta línguas e dialectos, e ainda hoje perdura nos crioulos do Ceilão, da Malásia e de Singapura.
Pois não mandou D. Manuel I, em 1504, para o Congo "muitos, mestres de ler e de escrever" e, em 1512, para Cochim uma "arca de cartilhas destinadas aos cem meninos" que ai aprendiam português, e dois anos depois não saía de Lisboa para o Oriente a primeira tipografia?
Segundo David Lopes, "é também essa difusão de português que explica que os Holandeses, Dinamarqueses e Ingleses nela pregassem em tantas partes do Oriente até ao alvorecer do século XIX e criassem uma literatura em língua portuguesa, de feição religiosa principalmente".
É sensível a influência do nosso idioma em determinadas línguas e dialectos de alguns dos novos países africanos. Ainda no século passado o português era a língua estrangeira mais conhecida na costa do Daomé, até ao ponto do os padres para serem compreendidos terem de nele pregar. Ainda há dias um escritor da República dos Camarões afirmou na Sociedade da Língua Portuguesa que o nosso idioma, com o seu carácter universalista e como idioma radicado em África, onde foi o primeiro a expandir-se como "língua franca", representa naquele continente uma das primeiras zonas linguísticas, geográfica e populacionalmente unida, devendo fomentar-se a sua expansão, para favorecer a própria vida das línguas nativas.
Para além do problema da difusão da língua portuguesa nas províncias ultramarinas tema largo e proficientemente tratado ainda há dias nesta Assembleia, não se omita a circunstância, antes sirva de força estimuladora para vencimento das carências, das dificuldades e das inércias então apontadas, de ser ela um dos mais poderosos vínculos espirituais da unidade deste velho país espalhado pelo Mundo e no presente, o denominador comum de uma cultura que partilhamos com oitenta milhões de brasileiros.
Não será bastante. Sr. Presidente, para exaltarmos a língua que é a própria pátria, no cantar de Fernando Pessoa, na qual escreveram D. Sancho I. Fernão Lopes, Camões, Rodrigues Lobo, António Vieira, Bernardes, Garrett e Camilo e alguns contemporâneos de génio, património comum de dois grandes povos, e para a defendermos dos estrangeirismos, dos modismos inconvenientes e dos solecismos que vão corroendo a sua pureza, roubando-lhe a personalidade tão singular e característica de instrumento de uma cultura e de uma civilização?
Li algures que "a língua é a expressão, melhor dizendo, o documento de um itinerário ou da mesma aventura vital por uma nação corrida".
A língua não permanece estática, nem no tempo, nem no espaço. Ela evolui constantemente num processo que nos parece lento, imperceptível, apenas porque entramos nele, nele participamos. A língua que falamos parece-nos diferente da dos portugueses da Idade Média ou do Renascimento, mas não nos apercebemos facilmente que os nossos pais e os nossos filhos têm linguagem diversa da nossa. E se isto se dá no tempo, o mesmo acontece no espaço. Não ê possível, no domínio ortoépico, conseguir-se a uniformidade do idioma, considerados os diferentes e afastados pontos em que é falada. É fácil demonstrá-lo mesmo sem se atentar na evolução da linguagem falada em Portugal e no Brasil. Ponhamos o caso metropolitano e insular português: não se fala no Minho como no Algarve, no Alentejo como na Madeira. Arriscamos até em dizer que o homem de Viseu falando com o de Ponta Delgada terá, por vezes, dificuldade em o entender.
E, todavia, todos falam o português, e será difícil e até ousado dizer qual deles fala melhor o português.
O problema da ortografia é um tanto diferente. É ela, pela sua própria expressão, que dá uniformidade à língua, é através dela que a cultura melhor se transmite e se expande.
A ortografia ria língua portuguesa manteve-se uniforme até à reforma de 1911, ligada ao nome do grande filólogo Gonçalves Viana. O caminho da simplificação era inevitável, e pena foi que ela não se houvesse obtido por acordo entre Portugal e o Brasil. Já em Espanha a simplificarão ortográfica se fizera cem anos antes e a própria Academia Brasileira de Letras, em 1907, estudara uma reforma semelhante à dos filólogos portugueses de 1911.
Os dois países irmãos mantinham-se de costas voltadas um para o outro e a partir dessa data ficou o Mundo perante duas línguas portuguesas, ou, antes, de uma língua que se escrevia de duas maneiras diferentes, uma em Portugal e outra no Brasil.
A situação não poderia manter-se sem sérios prejuízos para os dois países, mas somente em 1923 a Academia das Ciências de Lisboa pôde estabelecer negociações com a Academia Brasileira para o estudo ortográfico da unificação da língua, e em 1928 o Prof. Oliveira Salazar, Ministro das Finanças, preocupado com a divergência, mandou inscrever, pela primeira vez, no orçamento do listado, a verba destinada aos estudos necessários, que começaram imediatamente a ser feitos pelos Profs. José Maria Rodrigues, José Leite de Vasconcelos, David Lopes e José Joaquim Nunes, todos eminentes filólogos.
Foi possível, assim, assinar-se em 1931 um acordo entre os dois Governos e nele intervieram as citadas Academias, o que todavia, não conduziu à paz linguística.
Coube, finalmente, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, Prof. Oliveira Salazar, e ao embaixador do Brasil em Lisboa assinarem, em 1943, uma convenção destinada a regular de mútuo acordo o sistema ortográfico comum, da qual resultou a conferência interacadémica. Aprovada a unificação, no Rio de Janeiro em 5 de Dezembro de 1945 e na capital portuguesa três dias depois, o mérito principal da convenção coube ao Chefe do Governo Português, segundo a opinião insuspeita do escritor Ribeiro Couto, que fez parte da delegação brasileira.