2472 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 122
pectos a agir em conformidade com as prescrições da confissão a que pertencem.
Ainda neste domínio do matrimónio concordatário, tal como certa jurisprudência primeiro o aplicou e o Estado, depois, unilateralmente, o interpretou nos artigos 1596.º e 1599.º do Código Civil de 1967, é preciso que se saiba que a Igreja ficou sem a liberdade de decidir da oportunidade da celebração de um sacramento. «O casamento católico», diz-se no citado artigo 1596.º «só pode ser celebrado por quem tiver a capacidade matrimonial exigida na- lei.» «Á dispensa ido processo preliminar», determinai/por soía vez o artigo 1599.º «não altera os exigências da lei civil quanto à capacidade matrimonial dos nubentes, continuando os infractores sujeitos às sanções estabelecidas na lei.» A Igreja em. Portugal antes da Concordata podia e agora não pode admitir ao sacramento do matrimónio uma pessoa casada civilmente com terceiro. Por ter autorizado um casamento nessas condições, ao abrigo do direito canónico, já um dos nossos arcebispos se viu pronunciado pelo crime de bigamia e só não foi submetido a julgamento porque a morte o furtou a semelhante humilhação.
Mas a Concordata pode ser denunciada. E, nessa hipótese - que certos incidentes não permitem considerar nem absurda, nem necessariamente longínqua -, só restará aos católicos esta lei da liberdade religiosa. De resto, para já, e de acordo com a base XVIII, n.º 2, da proposta, «serão aplicáveis às (pessoas colectivas católicas os disposições desta lei que não contrariem os preceitos concordatàriamente estabelecidos». Quais são essas disposições? Uma resposta satisfatória exigiria longa análise e minuciosos confrontos. Não podem, portanto (nunca deveriam), os católicos encarar esta proposta como uma lei para outros, para as seitas ou seitarolas, como alguns, um espírito cristão, se exprimem em exposições que nos dirigem.
Dentro desta perspectiva descobrem-se desde já algumas deficiências sérias: falta uma norma que reconheça efeitos civis ao casamento monogamico precedido do processo preliminar e celebrado de acordo com os ritos próprios da confissão religiosa; falta também uma forma correspondente ao actual artigo 2.º da Concordata.
3. Outra das coordenadas indispensáveis à compreensão e apreciação da proposta será a concepção de vida religiosa que lhe estará subjacente.
Se é certo que os textos legais não têm de vincularar-se a expressões doutrinàriamente comprometidas, não deixarei, contudo, de lamentar a ausência de uma declaração inequívoca no sentido de que a liberdade religiosa é um dos direitos fundamentais. Uma tal declaração permitiria «situar» o expediente do reconhecimento como simples via ide atribuição da personalildade jurídica ias confissões e associações religiosas e não como processo de atribuição do direito à liberdade religiosa.
Sob outro aspecto, parece-me muito estreita a concepção de vida religiosa que serve de suporte à proposta. Admite-se, é certo, o plano da «doutrina» ou «crença»; nuas, para além dele, no domínio da prática, só se vê claramente formulada a finalidade do culto, parecendo que a própria referência a «outros fins específicos da vida religiosa» se poderá confinar à mesma esfera do «culto» sem ultrapassar as actividades directa ou indirectamente subsidiárias de mesmo. Suspeita-se que é numa concepção desta ordem que vão radicar as seguintes disposições da proposta:
É lícita a reunião das pessoas para a prática comunitária do culto ou para outros fins específicos da vida religiosa (base v, n.º 1).
Às confissões religiosas reconhecidas é permitido formar associações ou institutos destinados a assegurar o exercício do culto (base XI, n.º 2).
São consideradas religiosas as associações ou institutos constituídos ou fundados com o fim principal de sustentação do culto de uma confissão religiosa já reconhecida de harmonia com as normas e disciplina dessa confissão (base XII, n.º 1).
As confissões religiosas reconhecidas têm o direito de assegurar a formação dos ministros do respectivo culto, podendo criar e gerir os estabelecimentos adequados a esse fim (base XVI, n.º 1).
Os estabelecimentos que não se restrinjam a ministrar a formação e ensino religiosos ficam submetidos, nessa medida, ao regime previsto para os estabelecimentos de ensino particular (base XVI, n.º 3).
Estas transcrições parecem levar à conclusão de que a proposta esquece que a vida religiosa é crença e acção em coerência com a crença; é que o culto é apenas um aos aspectos dessa acção. Confinar a liberdade religiosa às manifestações de culto, como alguns pretendem, é desvirtuar a vida religiosa.
4. Seria agora a altura de perguntar quais os objectivos do Governo ao propor os novos princípios legais.
Certas declarações do preâmbulo da proposta deixam pressupor que se quis superar «a variedade dos diplomas que actualmente regulam a matéria», reformular «definir o sistematizar as normas fundamentais relativas à Uberdade religiosa» e corrigir «as deficiências do tratamento conferido às confissões não católicas».
Tê-los-á atingido? Não se revoga nenhum dos diplomas, cuja variedade postularia uma reformulação sistemática; deixam-se de fora os aspectos penais da matéria; deixam-se igualmente de fora os aspectos fiscais; não se dá qualquer relevo jurídico à celebração do casamento segundo os ritos das confissões reconhecidas; e, finalmente, mantém-se a regra de que o exercício dos vários direitos em que a liberdade religiosa se desdobra se deve subordinar, em princípio, «às normas gerais relativas às mesmas» - o que, além de não favorecer nem a sistematização, nem a estabilidade das normas aplicáveis, deixa poucas dúvidas sobre o carácter autoritário ou liberal do regime proposto.
Quanto às deficiências de tratamento conferido às confissões não católicas, pretende-se corrigi-las com o instituto do reconhecimento prévio. Deter-me-ei um pouco nessa nova figura jurídica antes de passar ao exame alguns outros aspectos fundamentais.
5. À sombra do princípio constitucional da liberdade dê culto, as confissões religiosas iam. vivendo numa situação de mero facto. Faltava-lhe a personalidade jurídica, é certo, mas a situação delas enquadrava-se no domínio do lícito.
Surge agora o expediente do reconhecimento com as formalidades e exigências previstas na base IX. As confissões que não estejam organizados hierarquicamente» que desenvolvam a sua acção em pequenas comunidades autónomas, dificilmente poderão satisfazer às exigências da proposta.
O n.º 1 da base IX está redigido em termos que levariam a supor que o reconhecimento é facultativo: «As confissões religiosas podem obter reconhecimento ...» Do conjunto da proposta deduz-se, porém, que ele é obrigatório. Efectivamente, só o culto público «das confissões religiosas reconhecidas é que não depende de autorização oficial nem de participação às autoridades civis (base V); só as confissões religiosas legalmente reconhecidas se podem organizar e fundar associações (base XI);