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2910 | I Série - Número 74 | 26 de Abril de 2001

 

consagradas na lei. Essa é a primeira marca genética do sistema democrático português: foi conquistado a partir da Revolução e não outorgado; existiu na rua, antes de existir na lei.
Segundo, porque a Revolução portuguesa de 1974/75 representou uma alteração radical, ainda que relativamente curta, das relações historicamente injustas e desequilibradas entre o capital e o trabalho. Poderá dizer-se que foi, talvez, o único momento da nossa História contemporânea em que essa oligarquia arrogante, prepotente e obtusa, que era a portuguesa, tremeu, sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés e viu a inexpugnável «ordem das coisas» que era a sua virada de pernas para o ar. E novamente por virtude dessa enorme explosão revolucionária de um mundo do trabalho que, subitamente, descobriu que o futuro, isto é, que tudo estava ao alcance das suas mãos, da sua iniciativa e do seu sonho. E que se pôs de pé. E que, por iniciativa própria, em poucas semanas, criou comissões de trabalhadores e conquistou o essencial dos seus direitos sindicais; mas também o salário mínimo ou as férias pagas; mas também a segurança social, as reformas dignas; mas também a gestão das empresas abandonadas ou a ocupação das terras dos grandes agrários alentejanos. Conquistas sociais que estruturariam os direitos sindicais fundamentais consagrados na lei, o essencial do sistema público de segurança social ou do sector público ou cooperativo da economia nacional.
Em terceiro lugar, porque, fruto desta dinâmica, e na sequência dela, se operaram duas transformações decisivas, ainda que hoje muito incompletas e, quiçá, maltratadas: a democratização do ensino, permitindo o acesso a todos os níveis do ensino público de centenas de milhar de jovens, até aí deles excluídos, e a criação de um serviço nacional de saúde. Dois serviços públicos que a Constituição consideraria de acesso universal e tendencialmente gratuitos.
Quero eu dizer que, se a Revolução se perdeu, muitas das suas marcas, das suas conquistas, do seu património, permaneceram nas leis ou nas realidades que elas consagraram. Precisamente, ao comemorarmos Abril e a Constituição de Abril, temos de alertar a opinião pública para que o essencial dessas conquistas está, hoje, ameaçado.
Em termos gerais, ameaçado pela própria lógica essencial da globalização capitalista. Uma lógica de acumulação, de expansão e de decisão que tende a transformar as sociedades democráticas em sociedades anónimas, desenvolvendo uma contradição evidente entre a lógica de execução das suas prioridades e a de funcionamento das democracias representativas, tal como as herdámos da Revolução Francesa. Mas que atenta também contra mais de um século de conquistas sociais e sindicais, precarizando o trabalho, criando desemprego estrutural, esvaziando o poder dos sindicatos, descobrindo formas novas e infinitamente mais eficazes de dividir e dobrar os trabalhadores e de privatizar e desmantelar os serviços e as empresas públicas.
A nosso ver, esta globalização económica, financeira e política não se reforma, combate-se. E combate-se em nome de uma alternativa civilizacional da esquerda.
Os candidatos a humanizadores da globalização tornaram-se, em todo o Ocidente, nos seus mais dedicados gestores. Esse foi o destino das social-democracias europeias do pós-guerra. Em termos nacionais, esse é o papel do Governo do PS. E, à parte reminiscências de cultura que persistirão em alguns «marretas» (o termo não é meu), pouco o vai distinguindo, à semelhança dos seus pares, dos partidos de direita com que partilham e monopolizam o sistema político. Um novo rotativismo, crescentemente apodrecido, mercenarizado, sem outra chama de ideal que não seja gerir negócios alheios e alguns próprios.
A direita sabe que pode contar com a complacência e a capitulação deste Governo para se poder lançar ao assalto do património fundamental de Abril. Veja-se a vozearia que por aí vai, numa aliança que só pode ser santa, de alguns patrões, banqueiros, alguns bispos, plumitivos diligentes, académicos acacianos e eu sei lá, contra tudo o que seja o menor ensaio de justiça distributiva, de protecção das minorias, de defesa dos direitos das mulheres ou de combate sério à toxicodependência. E ainda é só o começo.
Mas a pressão dos interesses e do conservadorismo ideológico teve, pelo menos, o mérito de evidenciar até onde pode ir o actual Governo. E não vai longe, paralisado pelas críticas da direita, recuando em debandada e cedendo em tudo o que se suspeita poder desagradar-lhe. Há dias, vimos o PS aprovar a lei de bases da família, apresentada pelo PP. Ontem, consumou-se, novamente com o apoio do PS, o último passo para a aprovação da lei de liberdade religiosa, exigida pelo Patriarca de Lisboa, criando um estatuto de excepção para a Igreja Católica e aceitando, implicitamente, o constrangimento imposto a este Parlamento, ao considerar a Assembleia da República incompetente para se pronunciar sobre as relações do Estado com aquela Igreja.
E, no entanto, senhoras e senhores, nós precisamos não só de defender o património de Abril, mas de o desenvolver e recriar para responder aos desafios do futuro. Por isso, a esquerda, todas as esquerdas, dentro ou fora dos partidos, precisam de concertar-se e de coordenar-se. Em respeito pelas suas diferenças e pela sua identidade própria, mas sem preconceitos. O Bloco de Esquerda renova aqui a sua proposta de uma mesa comum das esquerdas para buscar caminhos de cooperação. Não é só nacionalmente que esta aproximação é necessária e inevitável. A globalização dos mercados e dos capitais globalizou as lutas, as resistências e as alternativas. Nós estamos nessa esquerda internacional que se manifestou em Seattle e em Nice, que se reuniu em Porto Alegre e que desceu à rua em Montreal. Uma esquerda que não se esqueceu de Abril, mas para encarar o horizonte largo do que nos espera. Uma esquerda que, como em Abril, quer o impossível, ou melhor, quer tornar possível o impossível.

Aplausos do BE.

O Sr. Presidente: - Em representação do Grupo Parlamentar de Os Verdes, tem a palavra a Sr.ª Deputada Heloísa Apolónia.