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1090 | I Série - Número 027 | 06 de Dezembro de 2001

 

Éramos então um Parlamento jovem, ainda imbuído do pensamento utópico que presidiu aos acertos e desacertos da embriaguês da liberdade conquistada.
Disse, nessa altura, inter allia: «Sem liberdade não existe democracia; e sem democracia não existe liberdade» (…) «não pode existir liberdade sem justiça social, tal como não pode existir justiça social sem liberdade» (…) «num sistema democrático, a oposição é necessária» (…). Disse ainda: «enquanto cada vez mais se adensam as nuvens no panorama do Mundo, e a violência, a fome, a supressão das liberdades políticas e sindicais, a tortura, o preconceito e o assassínio político infelizmente prosperam ainda em tantos pontos do planeta, deverão os países europeus democráticos, auxiliados pelos parlamentos livres, fazer ouvir, forte e nítida, a sua voz, nas sedes internacionais, em defesa dos desprotegidos...».
Essas e outras reflexões terão tido a sua génese na sua cela da prisão de Santo Stefano, onde o regime fascista o havia encarcerado - reparem só - para cumprir pena de prisão perpétua!
Por mais que, com o tempo, as invocadas afirmações se tenham convertido em quase lugares comuns, à época soaram aos nossos ouvidos como música de Natal! Infelizmente ainda se não converteram em realidades comuns.
Pode assim Vossa Excelência imaginar com que honra e com que expectativa nos preparamos para ouvir o que tem a dizer-nos. Vem Vossa Excelência precedido de um percurso profissional e político de luxo. Licenciado em Letras e em Direito, corredor de fundo da carreira bancária, até à meta olímpica do governo do Banco de Itália; Ministro do Tesouro, do Orçamento e da Programação Económica; Presidente do Conselho de Ministros; figura de proa de muitos altos cargos da cena política internacional; enfim, Presidente da República de Itália, zimbório mais alto do edifício do prestígio e do poder.
Nesse percurso brilhante foi deixando a impressão digital da sua personalidade, da sua inconformidade e do seu espírito reformista. Vossa Excelência é hoje, não apenas para a Itália, mas para a Europa e para o Mundo democrático e livre, uma referência tão incontornável como os valores e direitos fundamentais a que devotou todas as horas da vida e da alma!
Bem haja por ter aceitado visitar-nos e dirigir-nos a palavra. Está numa Casa da democracia, logo numa Casa que também é sua.
Portugal e a Itália são países irmãos. É a mesma a sua matriz civilizacional. A história juntou-nos em tantas aventuras, que as nossas tão ricas identidades se tocam e se cruzam. As nossas línguas, tendo tido uma origem comum, autonomizaram-se sem de todo se separarem. A fronteira que as demarca é facilmente transponível - ainda há pouco dei por mim a falar em italiano, e não imaginam que italiano falei! E a nossa civilização, tão tributária da brilhante civilização romana - na língua, na retórica, no direito, nas instituições, nos valores e até nos comportamentos - irmana-nos mais do que nos separa. Por curiosa coincidência, consegue até ser a mais acentuada, entre as de todos os países latinos, a nossa similitude morfológica. O português-tipo ou abre a boca e se identifica pela língua ou passa por italiano, e vice-versa.
Este é o resultado do fabuloso império e da brilhante civilização romana. Tão rica e tão irradiante de luz, que cobriu uma das mais vastas áreas hegemonizadas de sempre! Na minha aldeia remota da Serra da Estrela, a atravessar um pequeno rio - que por ser o rio da minha aldeia é o mais belo do Mundo (Sá, Fernando Pessoa!) -, os romanos deixaram uma ponte de granito por onde ainda hoje se passa. Talvez para facilitar o acesso dos carros de assalto aos picos da Estrela, onde os lusitanos de Viriato, e depois de Sertório, tiveram o desplante de resistir ao poderoso e temeroso exército romano. E talvez não! Os romanos construíram por toda a parte (como em Portugal e no norte de África), e sempre para a eternidade!
Que uma tal civilização tenha podido sossobrar convida-nos a rever pressuposições sedutoras sobre a durabilidade da nossa actual civilização.
Mais modernamente, a cultura e a arte italianas impregnaram as nossas. Dante e Petrarca, Miguel Ângelo ou Rafael não foram um exclusivo da Itália. Conquistaram mais espaço, e por mais tempo, do que o próprio César. Mesmo Camões, um dos maiores e mais originais poetas épicos e líricos da literatura universal, poetou segundo Petrarca.
Apesar disso, os portugueses, na era de quinhentos, pobres e poucos, conseguiram disputar à Itália o monopólio do comércio mundial de então. Arredondámos o Mundo, aliás em cooperação - foram italianos e portugueses que começaram a globalização de agora. Desbravámos os caminhos do mar e neles semeámos fortalezas. Por cerca de um século, por milagre da nossa tecnologia de ponta na arte de marear, do avanço da nossa construção naval, do metal dos nossos canhões, e da tempera do nosso arrojo, dominámos os mares, até à China e ao Japão.
Até na grandeza Portugal e a Itália puderam ser assim grandes entre os maiores.
O tempo rolou e, já próximo de nós, ainda nos havia de caber o destino comum de duas ditaduras fascistas. Salazar em Portugal e Mussolini em Itália, com direito a retrato sobre a mesa do ditador português, oprimiram e tentaram desvertebrar os nossos povos. Foram vencidos. Mas o equilíbrio instável da guerra fria viria a prorrogar Salazar e Franco enquanto baluartes peninsulares do anticomunismo americano.
Foi precisa uma revolução - surpreendentemente sem sangue, a não ser o da cor dos cravos - para que Portugal sacudisse o jugo semi-secular que o asfixiava.
O contencioso colonial português, a duras penas, foi encerrado. E após sucessos de boa e má memória, lográmos aprovar uma Constituição e instituir um regime de democracia parlamentar, a caminho do Estado de Direito que hoje somos.
Criámos assim os pressupostos políticos, e depois os económicos, necessários à nossa candidatura às então Comunidades Europeias, onde entrámos de braço dado com a vizinha Espanha. Aí encontrámos já, como membro fundador, a República de Itália, que abençoou a nossa adesão como acto promissor de uma Europa mais alargada e mais unida. O projecto de novos alargamentos continua. E não menos de novos reforços da coesão europeia.
Já vamos numa União com significativos avanços de sentido federalizante, por mais que essa evidência se esconda, ou mesmo se recuse. O Pai Natal porá em breve no sapato dos defensores de um projecto europeu cada vez mais coeso a prenda inestimável da moeda única. Representará um salto qualitativo colossal, de cujo alcance poucos ainda se terão apercebido. E o Sr. Bin Laden encarregou-se de acentuar, a golpes de maldade e de loucura, a imprescindibilidade e a urgência de novas políticas comuns de relações exteriores e de segurança, esta a desaguar num sistema defensivo europeu eficaz e único.