7 | I Série - Número: 071 | 24 de Abril de 2009
Temos, porém, um novo elemento, o qual demonstra uma nova atitude perante o fenómeno da corrupção — sabermos que a sociedade sente existir uma perigosidade associada à manifesta disparidade entre os rendimentos de um qualquer funcionário ou político e o seu património ou modo de vida. E quando tal acontece a generalidade das pessoas formula esse juízo de perigosidade. Deve, por isso, a lei criminal tutelar esse juízo de perigosidade através de um tipo de crime de perigo abstracto que não envolva qualquer inversão do ónus da prova. Isto já vem salientado, aliás, pelo Tribunal Constitucional, por exemplo, nos tipos legais de crime ligados à posse e ao tráfico de droga.
E, mais, tivemos o cuidado de acautelar o já referido princípio da presunção da inocência, atribuindo em exclusivo à acusação a prova dos respectivos elementos do crime, que são os seguintes: os rendimentos do investigado; o seu património e o modo de vida; a manifesta desproporção entre aqueles e estes, que não resultem de outro modo de aquisição lícita; e, por fim, o nexo de contemporaneidade entre o enriquecimento e o exercício das funções públicas.
Ao arguido caberá, no respeito pelo acusatório, e tal como acontece em todos os julgamentos criminais, suscitar no julgador a certeza da sua inocência ou a dúvida que possa levar à sua absolvição.
O Sr. António Montalvão Machado (PSD): — Muito bem!
O Sr. Fernando Negrão (PSD): — Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Ao ser anunciada pelo PSD a renovação desta iniciativa legislativa que criminaliza o enriquecimento ilícito, o PS e o Governo enredaram-se atabalhoadamente, e de imediato, na aparência da produção de um conjunto de iniciativas com o exclusivo objectivo de fazer parecer que quem tinha a solução não era o PSD mas, sim, o PS.
O Sr. António Montalvão Machado (PSD): — Pois foi!
O Sr. Fernando Negrão (PSD): — Mal, como não podia deixar de ser, pois o intuito do Governo não foi o de resolver o problema mas somente o de encenar uma peça e ficcionar o respectivo enredo!
Aplausos do PSD.
E, nessa encenação, confrontou-nos com um texto cujo principal personagem é um funcionário da máquina fiscal, a quem é dado o poder discricionário de avaliar da existência de «suspeitas fundadas» de enriquecimento superior a 100 000 euros que estejam em desconformidade com as respectivas declarações fiscais e de taxar em 60% essa importância.
Muitas dúvidas, e sérias, nos suscita este «guião».
Primeiro: se o enriquecimento não está de todo justificado, por que não é o mesmo taxado em 100%, já que os 40% que o Governo pretende deixar ao enriquecido constituirão um prémio pela sua capacidade de enganar o fisco? Segundo: pretende o Governo pôr a administração fiscal a dar como provados crimes sem processo, criando sanções criminais atípicas e, assim, violando o princípio da separação de poderes? Terceiro: com esta medida quer o Governo retirar aos visados, pela administração fiscal, qualquer possibilidade de garantia de defesa dos seus direitos? E tudo isto ao contrário do que aconteceria se a realidade do enriquecimento ilícito fosse criminalizada, ou seja, todos os direitos dos visados seriam integralmente assegurados nos termos das garantias dadas pela lei processual penal e seriam os tribunais, o órgão constitucionalmente competente para o efeito, a realizar o julgamento e a aplicar, ou não, a pena, assim respeitando o princípio da separação de poderes.
Por fim, a criminalização do enriquecimento ilícito dar-nos-ia a certeza, a provar-se, de que o Estado exerceria o direito de reaver, na sua totalidade, as quantias ou os bens não justificados e aplicaria uma pena também com o objectivo de acautelar a prevenção especial e a prevenção geral.
Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados, diz-nos o Professor António Barreto, numa das suas habituais e sempre interessantes crónicas de domingo, publicadas num jornal diário, o seguinte: «Se a corrupção for de esquerda, só a direita reage. E vice-versa. Se for autárquica, só o poder central se insurge. E reciprocamente.
Se for pública, só os privados protestam. E ao contrário. Se for de um partido, só os outros contrariam.» E acrescenta: «Quer isto dizer que não existe qualquer espçcie de tradição ou de ‘cultura’ contra a corrupção, a promiscuidade e a ‘cunha’«.
Pois, Sr.as e Srs. Deputados, cabe-nos a responsabilidade de contrair esta complacência, passividade e mesmo tolerância que, por vezes, se sente existir relativamente ao vasto fenómeno da corrupção, que mina a vida económica e política e degrada a qualidade da democracia.
Termino, como terminei há dois anos: não queremos a paternidade da ideia, não queremos fazer avançar a ideia sem o contributo de todos. Apelamos, por isso, a todos os grupos parlamentares para que, em conjunto, contribuam para aperfeiçoar, melhorar ou mesmo modificar o que aqui hoje apresentamos, se outra solução, melhor, puder ser encontrada.