I SÉRIE — NÚMERO 56
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O Sr. Presidente (José Manuel Pureza): — Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Inês de
Sousa Real
A Sr.ª Inês de Sousa Real (PAN): — Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Em França, Camille Kouchner
denunciou o abuso de que o seu irmão, então com 14 anos, foi alvo dentro da própria família. O abuso durou
cerca de dois anos. Esta denúncia espoletou milhares de outras denúncias em todo o país, dando origem à
campanha #MeTooInceste. Numa delas podia ler-se: «Eu tinha cinco anos (…) e, numa noite, o irmão da minha
mãe destruiu a minha inocência e enegreceu o resto dos meus dias. No espaço de um segundo eu fiz 100 anos».
«O meu pai dizia-me que era normal descobrir como o corpo da sua filha estava a desenvolver-se», lia-se noutro
comentário.
Todas estas denúncias tinham em comum o facto de se referirem a crimes de abuso de menores cometidos
dentro do círculo familiar, que tinham ficado por punir e que já estavam prescritos há muito tempo. Em todo o
caso, esta campanha, para lá da sensibilização para este flagelo e de dar a muitas pessoas a coragem para
denunciar os terríveis abusos de que foram vítimas, abriu em França um debate sobre a adequação do regime
de prescrição destes crimes.
Esta história foi em França, mas poderia ser em Portugal. A Associação Quebrar o Silêncio diz-nos que os
homens que, em crianças ou jovens, foram vítimas deste tipo de abuso apenas denunciam o crime e procuram
ajuda no mínimo 20 anos após o abuso, encontrando-se a maioria dos homens na casa dos 35 a 40 anos, tendo
a sua vida sido pautada pelas marcas destes abusos e violação.
Isto é muito preocupante porque, no atual quadro legal, muito embora a prescrição nunca ocorra antes de a
vítima perfazer 23 anos, estes crimes estão prescritos, em alguns casos há décadas.
Os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual de menores e o processo penal que lhes está
associado são extremamente traumáticos para a vítima do ponto de vista físico e psicológico, o que leva a que
em mais 63% dos casos a revelação destes crimes aconteça, no mínimo, um ano após o abuso — repito, no
mínimo, um ano após o abuso! Ou seja, a maioria das vezes mais anos até!
As razões são múltiplas, incluindo a relação da vítima com o agressor ou agressora, a não perceção dos
factos como crime atenta a tenra idade da vítima, a autoculpabilização, a falta de provas, a falta de confiança
no sistema judicial, da rede social ou familiar, situações de síndrome da acomodação e, claro, a humilhação e a
vergonha.
A última alteração estrutural às regras de prescrição destes crimes que tivemos em Portugal ocorreu em
2007. Passados 14 anos, é mais do que urgente que se assegure um quadro legal capaz de proteger estas
vítimas. É preciso assegurar que a vítima, no nosso País, se sente preparada, do ponto de vista emocional, para
a revelação do crime ou, por exemplo, para lidar com todos os aspetos relacionados com o seguimento do
próprio processo que depois se vai espoletar.
É por isso que o PAN propõe uma alteração destas regras para que o procedimento criminal não se extinga
nunca antes de a vítima perfazer 40 anos quando a vítima seja menor de 14 anos e nunca antes de decorrerem
20 anos ou de a vítima perfazer 35 anos quando a vítima seja maior de 14 anos. Esta proposta, Sr.as e Srs.
Deputados, não é um ponto de chegada, mas um ponto de partida para uma discussão que este Parlamento
tem de ter em nome do progresso social e da defesa das vítimas de abuso infantil. Trata-se de uma realidade
inaceitável nos nossos dias que, enquanto eleitas e eleitos, não podemos continuar a ignorar e que não se
coaduna com esperarmos que sejam harmonizadas as normas do Código Penal nos crimes de violação com
outro tipo de criminologia quando não temos ainda um sistema judicial preparado para ouvir, para acompanhar
e para apoiar as vítimas, em particular as vítimas mais vulneráveis ou de tenra idade.
Neste debate, o PAN, prosseguindo os avanços dados na anterior Legislatura, traz a discussão outras duas
propostas que pretendem assegurar a plena concretização da Convenção de Istambul no nosso País, reforçando
a proteção das vítimas dos crimes contra a autodeterminação sexual.
Por um lado, queremos que todos os crimes contra a liberdade sexual passem a ser considerados crimes
públicos. Não se trata de querer perseguir indiscriminadamente o agressor, uma vez que o crime será
investigado de acordo com as regras gerais de imputação penal e as garantias concedidas à defesa. Também
não se trata de fazer prevalecer obstinadamente o interesse comunitário na persecução penal sobre a vontade
da vítima, uma vez que o PAN, seguindo as recomendações da APAV, prevê uma válvula de escape que,
permitindo dar voz à vítima e valorar a sua vontade, assegura a possibilidade de a vítima requerer a todo o