16 DE OUTUBRO DE 2021
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O tema é ainda mais sério do que muitos julgam. O RASI (Relatório Anual de Segurança Interna) 2020
revela que, nas detenções por crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, a maior parte teve a ver
com o crime de abuso sexual de menor — quase o triplo dos detidos por violação. Mais chocante ainda é que
metade dos abusadores dos menores eram familiares das suas vítimas.
Contudo, a realidade pode ser ainda mais horrorizante, pois este é apenas o retrato dos crimes conhecidos.
Existirão muitos outros, em que o medo ou a vergonha impedem as crianças de denunciar.
Por isso, é tão importante criar condições e dar tempo para que uma pessoa adulta que tenha sido
abusada na infância possa, quando se sentir preparado para tal, procurar e encontrar a justiça.
Assim, votaremos a favor dos projetos do PAN e da Deputada não inscrita Cristina Rodrigues, que
pretendem aumentar o prazo de prescrição destes crimes. Faremos o mesmo quanto ao aumento de penas
proposto pelo Chega. Concordamos com o sinal de condenação social dado pelo aumento da moldura penal,
plenamente conscientes de que justiça não é igual a vingança e de que aumentar as penas não é, em si só,
uma panaceia.
Finalmente, votaremos contra o outro projeto, se é que se pode chamar assim, do Chega, que é uma
proposta que altera uma versão desatualizada da lei, não altera uma das molduras que diz querer alterar e
torna o crime de violação crime público (algo que o Iniciativa Liberal já propôs), mas não prevê a suspensão
provisória do processo. Há uma qualidade mínima das iniciativas legislativas e esta merece um rotundo
chumbo.
O Sr. Presidente: — Tem, agora, a palavra, para uma intervenção, o Sr. Deputado José Manuel Pureza, do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda.
O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Este é o tempo da vergonha — disse Francisco, o Papa, sobre a revelação da imensidão dos crimes de abuso sexual de crianças envolvendo
responsáveis da Igreja Católica. Este é o tempo da vergonha para todas e todos nós, crentes e não crentes. É
o tempo da vergonha pelo fenómeno do abuso sexual de crianças, tenha ele lugar onde tiver, envolva quem
envolver. Todos, a começar por quem tem responsabilidades de direção institucional, temos o irrenunciável
dever de criar condições para que tudo seja, séria e incansavelmente, investigado, para que a sociedade como
um todo crie anticorpos fortes contra estas práticas e as retire do silêncio espesso das dominações íntimas, e
para que todas as crianças e jovens sejam protegidos disso, que é repugnante.
Aqui estamos a assumir essa responsabilidade, sem nos desculparmos com o que outros fazem ou não
fazem. Façamos nós o que precisa de ser feito — esse é o nosso dever.
A realidade do abuso sexual de menores está identificada no seu encadeado de horrores. Uma em cada
cinco crianças é vítima de violência sexual, lembra o Conselho da Europa. Na esmagadora maioria dos casos,
o autor do crime tem com a criança uma relação de intimidade e de confiança própria da que se tem com um
familiar ou um cuidador. Invariavelmente, o abuso sexual é ocultado por um silêncio de chumbo, que é tanto
de vergonha própria como de imposição alheia. E esse silêncio sedimenta-se perversamente, fazendo o
trauma ficar como condição que persiste, insidiosa.
Este é o retrato que todas e todos conhecemos. Sabemos da imensidão dos números ocultos desta
realidade e essa ocultação é, ela mesma, parte da realidade. Há, pois, que pôr toda a coragem e toda a
lucidez na criação de condições para que o que custa tanto a revelar possa realmente ser revelado e julgado
para a redignificação das vítimas aos seus olhos e para prevenir que gerações sucessivas de crianças venham
a ser vítimas da sua vulnerabilidade.
É aqui que cabe uma reflexão e uma tomada de posição sobre a prescrição destes crimes hediondos.
Entendamo-nos: a prescrição não é o apagar de um crime, é, sim, a assunção de que, por regra, o passar
do tempo retira sentido ao cumprimento de uma pena, seja do ponto de vista da prevenção geral, seja do
ponto de vista da prevenção especial.
Entendamo-nos também sobre uma outra coisa: as pulsões punitivas, próprias de uma sociedade voltada
para o castigo e não para a recuperação dos autores dos crimes, são instintos primários que nada resolvem.
Não é, pois, não pode ser, por obediência a uma exacerbação de um Direito Penal da vingança — como a
que norteia os dois projetos do Chega — que se deve aceitar alargar o prazo de prescrição dos crimes de
abuso sexual de menores. É tão só pelo facto conhecido, e relevantíssimo, de que este é um crime que, pela