I SÉRIE — NÚMERO 23
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Antónia de Almeida Santos, e trazido ao Parlamento por milhares de cidadãos e cidadãs, alguns já
desaparecidos e hoje tão presentes, como Laura Ferreira dos Santos e, claro, João Semedo. Este já não é o
debate dos projetos primeiros do Bloco de Esquerda, do PS ou do PEV, de há três legislaturas.
É um debate sobre a mesma matéria, mas sabendo o País que, após duas votações, neste Plenário, com
maiorias sem precedentes e um debate parlamentar e social levado a cabo com profundidade, pluralismo e
abertura durante tantos anos, está para nós seguro que, seguindo as palavras do Tribunal Constitucional, «o
direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância».
Na sequência do pedido de fiscalização preventiva feito pelo Presidente da República, o Tribunal
Constitucional considerou que o princípio da inviolabilidade da vida humana não constitui, em geral, um
obstáculo à morte medicamente assistida. O Tribunal Constitucional, assim, aceitou a regulamentação da morte
medicamente assistida, pondo de lado a argumentação contrária, pelo que já não estamos aí. O que tivemos de
fazer foi, em respeito pela pronúncia do Tribunal Constitucional, densificar conceitos, em particular o de «lesão
definitiva de gravidade extrema», de acordo com o consenso científico.
Naturalmente, seguindo as amplas pistas deixadas naquele acórdão, nomeadamente quanto à lei espanhola,
a densificação do conceito referido passou pela elaboração de um preceito dedicado à definição dos conceitos-
chave do diploma. A não uniformização formal de todos os preceitos a partir do artigo com as definições
vinculantes — estarão recordados de que o CDS objetou à redação final do diploma — foi suficiente para que o
Sr. Presidente da República levantasse as dúvidas presentes no veto que nos dirigiu.
Podíamos ter confirmado o diploma, seguindo alguma doutrina constitucional, mas, como em todos os
momentos que marcaram este tema tão digno, não queremos outra coisa que não democraticidade sem mácula,
pelo que aqui estamos, com um projeto de lei que uniformiza todas as definições a partir do artigo 2.º e que, em
resposta ao veto do Sr. Presidente, especifica que se trata não de «doença grave ou incurável», mas de «doença
grave e incurável», definida como «doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e
irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade».
Por sua vez, como já constava do decreto anterior, entende-se por «lesão definitiva de gravidade extrema»
a «lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de
terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza
ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham a persistir no tempo sem possibilidade de cura
ou de melhoria significativa».
Cremos que não há, em termos de direito comparado ou nacional, conceitos mais densificados do que estes
nem lei mais defensiva. Com o devido respeito, após o acórdão do Tribunal Constitucional já referido e perante
esta redação, insistir na inconstitucionalidade do projeto que hoje aqui se debate levaria a que se tivesse de ter
por inconstitucionais, por enorme maioria de razão, muitas normas atualmente em vigor.
Exemplificando com um caso que, para o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, está absolutamente
pacificado: quem insiste em que ainda há, neste projeto, indeterminação inconstitucional nos conceitos tem por
constitucional o atual artigo 142.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, que prescreve que não é punível a
interrupção voluntária da gravidez quando, e cito, «houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a
sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita»?
Creio que não há qualquer celeuma médica na aplicação deste preceito, elaborado assim pelo legislador
precisamente porque este não é médico, mas pergunto se esta norma é mais ou menos densificada do que
aquela que prevê o conceito de «lesão definitiva de gravidade extrema». É que convém que aqui, como em
todos os órgãos de soberania, haja coerência, e nós fizemos o trabalho que se impunha e que o Tribunal
Constitucional tão bem delineou.
Por outro lado, não nos parece justo duvidar do alcance que sempre tiveram os diplomas votados nesta
matéria. Recordo que por duas vezes a Assembleia da República aprovou por bastante mais do que a maioria
absoluta dos Deputados em efetividade de funções a despenalização da morte assistida. Uma lei que, para
alguns, peca por demasiado cautelosa e que, em suma, reconhece isto: em casos estritamente delimitados, a
irreversibilidade da degradação física e o sofrimento atroz por ela provocado justifica aceitar a vontade de
antecipação da morte de quem experimenta esse fim de vida difícil de adjetivar.
Por duas vezes, o Presidente da República não promulgou o que o Parlamento aprovou. Na primeira vez,
invocou para isso dúvidas sobre a constitucionalidade, o que deu azo ao acórdão que afirma que não há um
dever de viver, e, depois, vetou politicamente, invocando dúvidas de interpretação jurídica.