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9 DE MAIO DE 1996

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É esta questão que cumpre dilucidar, antes de entrarmos na análise de cada decreto-lei.

I — Sobre a conformidade dos projectos de lei com a Constituição da República Portuguesa

1 — Nos termos do disposto no n.° 2 do artigo 115." da Constituição, as leis e os decretos-leis têm igual valor.

Trata-se do princípio geral da igualdade ou paridade da forma e valor das leis e dos decretos-leis, sem prejuízo da existência de um vasto domínio legislativo reservado da Assembleia da República, no qual a intervenção legislativa do Governo se encontra, absoluta ou relativamente, vedada (artigos 167.° e 168.° da Constituição), e igualmente sem prejuízo da possibilidade de chamamento dos decretos-leis à alteração ou rejeição pela Assembleia da República, através do processo de fiscalização parlamentar específico previsto no artigo 172.° da Constituição, desenvolvido e regulamentado nos artigos 201." e seguintes do Regimento da Assembleia da República.

Também o Governo tem um domínio legislativo reservado, relativo às matérias da sua própria organização e funcionamento, absolutamente vedado à intervenção legislativa da Assembleia da República (n.° 2 do artigo 201.° da Constituição), cujos diplomas estão logicamente subtraídos à actividade fiscalizadora parlamentar (n.° 1 do artigo 172." da Constituição).

O alcance prático do princípio da paridade da forma e do valor da lei e do decreto-lei é a possibilidade de a lei poder revogar o decreto-lei, e vice-versa, fora das áreas reservadas, sem prejuízo das excepções previstas no n.° 2 do artigo 115.°, sobre as quais não nos demoraremos visto não cobrarem relevo na questão em apreço.

2 — Não existe um critério material que permita caracterizar o exercício da função legislativa, pois a produção da lei mostra-se aberta, na Constituição, à intervenção de várias entidades, às quais é reconhecida a capacidade normal de produzirem actos formalmente legislativos.

E acentuamos a vertente formal da produção do acto legislativo pois, por contraposição à jurídico-material, um decreto-lei do Governo tanto pode traduzir-se numa lei propriamente dita (norma primária), como num regulamento (norma secundária), como ainda ser a expressão externa de um puro acto administrativo. • É com base nestes fundamentos que entendemos que o Decreto-Lei n.° 168/94, de 15 de Junho (aprova as bases da.concessão da concepção, do projecto, da construção, do financiamento, da manutenção e da exploração da nova travessia do Tejo em Lisboa, bem como da exploração e da manutenção da actual travessia), e o Decreto-Lei n.° 315/91, de 20 de Agosto (amplia a concessão outorgada à BRISA — Auto-Estradas de Portugal, S. A., pelo Decreto n.° 467/72, de 22 de Novembro, e pelo Decreto--Lei n.° 458/85, de 30 de Outubro, pela integração na mesma de novos lanços de áuto-estrada), que os projectos de lei em apreço pretendem alterar, consubstanciam um acto de gestão pública do Governo, típico do exercício da função executiva.

3 — Nestes termos, parece-nos legítimo que à Comissão se coloque as seguintes questões:

Será que a Assembleia da República dispõe da competência, por. exemplo, para prorrogar o prazo de uma concessão de obras públicas?

Será ainda que tem competência para, em regime de portagem, concessionar à BRISA, S. A., auto--estradas construídas pelo Estado?

Ou para perdoar comissões em dívida pela concessionária?

Ou para renunciar ao crédito de juros sobre comissões vincendas?

A resposta é negativa, no nosso entender. Veja-se, de resto, a contradição em que os projectos de lei incorrem:

a) Num primeiro momento visam, objectivamente, alterar as concessões, retirando determinados lanços de auto-estrada do regime de portagem; mas,

b) Num segundo momento, estabelecem uma injunção, dirigida ao Governo, no sentido de alterar as concessões naqueles termos.

Parece lógico deduzir que os autores dos projectos de ' lei reconhecem implicitamente que o poder de alterar as concessões em causa não está na disponibilidade da Assembleia da República.

Tudo se passa como se a Assembleia da República pretendesse fazer uma lei em que determina ao Governo que legisle no sentido de alterar as concessões que ela própria não pode alterar.

Saliente-se que nos parece um procedimento ambíguo e que, certamente, não prestigia o exercício da função legislativa pelo órgão de soberania Assembleia da República.

Melhor se alcançaria tal objectivo — ao menos de forma mais legítima — através do mecanismo das recomendações ao Governo. Com efeito, e fazendo nossas as hesitações de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 3." edição revista), diríamos que «[...] nada parece obstar a que a Assembleia da República aprove recomendações sobre o exercício das funções do Governo e de Administração. A Assembleia da República não se tem abstido —pelo contrário — de fazer recomendações ao Governo, incluindo imposições de legislação» (ob. cif., p. 656).

4 — Pelo exposto, existem duas conclusões, se não contraditórias pelo menos conflituantes, a retirar.

A primeira é a de que o princípio da paridade ou igualdade de forma e de valor das leis e dos decretos-leis, bastando-se a Constituição com o carácter formal do decreto-lei, permite a livre revogação ou alteração dos decretos-leis do Governo por leis da Assembleia da República, e vice-versa; fora das áreas de competência legislativa reservada da Assembleia da República ou do Governo. Deste modo os projectos de lei em análise (e sem prejuízo do que se dirá em sede de análise de cada um dos mesmos) estariam em condições de subir a Plenário.

A segunda é a de que, não obstante os projectos se proporem alterar actos legislativos formais, estes actos versam sobre matérias que tipicamente pertencem à função executiva do Estado, pelo que — e em homenagem ao princípio da separação dos poderes previsto nò artigo 114." da Constituição — não poderia ser modificado por um acto típico do exercício da função legislativa.

Nestes termos, o relator põe o presente relatório à consideração do Plenário.