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0002 | II Série A - Número 006S | 03 de Dezembro de 1999

 

PROJECTO DE LEI N.º 27/VIII
LEI DA LIBERDADE RELIGIOSA

I
Necessidade de reforma do direito das religiões em Portugal

A reforma do direito das religiões em Portugal em conformidade com a Constituição é um passo fundamental na construção legislativa do Estado de direito.
A reforma é necessária porque os dois diplomas jurídicos fundamentais sobre a matéria, de nível infraconstitucional, a Concordata de 7 de Maio de 1940 e a Lei n.º 4/71, de 21 de Agosto, por vezes designada de liberdade religiosa, concebidos no quadro constitucional de um regime de governo anti-democrático, articulam um entendimento da liberdade religiosa e da separação entre o Estado e as religiões inconciliável quer com a Constituição quer com a doutrina católica firmada no Concílio Vaticano II, as quais são entre si coincidentes na matéria.
É certo que algumas inconstitucionalidades mais evidentes da Concordata foram removidas de modo não ostensivo: assim a não aplicação do divórcio aos casamentos católicos (artigo XXIV) foi eliminada pela alteração da Concordata (Protocolo Adicional de 15 de Fevereiro de 1975), que se antecipou à própria aprovação da Constituição de 1976; a obrigatoriedade, salvo pedido de dispensa, do ensino da religião católica nas escolas públicas (artigo XXI) foi declarada inconstitucional nos termos do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 423/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10, 77), que não incidiu directamente sobre a norma concordatária, mas sobre a sua aplicação legislativa no artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 323/83, de 5 de Julho; o direito de levantar objecções de carácter político geral à nomeação de um Arcebispo ou Bispo residencial ou de um coadjutor, cum iure successionis (artigo X) deixou de ser e não pode voltar a ser exercido pelo Estado, mesmo quando para tal convidado.
Outras inconstitucionalidades, que resultavam da equiparação de princípio, estabelecida no artigo XI, dos eclesiásticos às autoridades públicas, quanto à protecção do Estado, foram tacitamente suprimidas, na medida em que não foram acolhidas no Código Penal (os artigos 307.º e 358.º deste último diploma não acolheram tal equiparação, quanto ao abuso de traje e à usurpação de funções, contra o disposto no artigo XV da Concordata). Já a consideração dos capelães militares como oficiais graduados (artigo XVIII) não foi removida. Uma equiparação apenas contextual, que não consta do texto, e apenas se pode cogitar como explicação dele, decerto incompleta, é a dos eclesiásticos aos funcionários públicos quanto à comum isenção de imposto sobre o rendimento derivado do exercício da função (artigo VIII). Neste caso foi a supressão da equiparação pela extinção deste benefício dos funcionários que tornou evidente a discriminação a favor dos eclesiásticos, maxime quando desempenham o mesmo tipo de funções (professores das escolas públicas) ou estão graduados como militares no mesmo posto ou como funcionários no mesmo nível do escalão de vencimentos (assistentes religiosos hospitalares e prisionais).
Numa apreciação global da Concordata de 1940 importa não esquecer que foi ela que selou a pacificação das relações entre a Igreja Católica e a República Portuguesa, antes iniciada pelos Decretos n.º 3856, de 22 de Fevereiro de 1918, e n.º 11887, de 6 de Julho de 1926, depois da guerra aberta do Estado contra a Igreja Católica, que culminou com a Lei da Separação (Decreto de 20 de Abril de 1911). Mas o entendimento da separação entre o Estado e a Igreja que a Concordata consagra não é o do princípio da separação, tal como ele resulta da Constituição de 1976 e dos documentos do Concílio Vaticano II. É antes o entendimento próprio do jurisdicionalismo, como sistema em que tanto o Estado como a Igreja admitem a outra parte a intervir em matérias que lhes são essenciais (iura in sacra, atribuídos ao Estado, restrições à soberania e à não identificação do Estado com particularismos religiosos ou ideológicos, a favor da Igreja), e que o desenvolvimento constitucional das revisões de 1951 e 1971 vieram acentuar.
Por outro lado, a Concordata foi desenvolvida pelo Acordo Missionário, contemporâneo e com o mesmo valor jurídico da Concordata, e por uma extensa legislação complementar, bem como pela jurisprudência e pelas práticas administrativas. Este corpo normativo concordatário tem impedido a própria reestruturação jurídica da Igreja Católica, ou pelo menos a sua transparência civil, como consequência do novo Código de Direito Canónico. A comunidade territorial de base da Igreja, a paróquia, não tem tido existência jurídica civil em Portugal, mantendo-se em vez disso a instituição de origem medieval das fábricas das igrejas paroquiais, como fundações patrimoniais de sustentação do culto, e os benefícios paroquiais, como fundação patrimonial de sustentação dos párocos, aparentemente para garantir os benefícios fiscais que uma certa interpretação da Concordata ligou às fábricas das igrejas.
Depois da revogação da concordata lateranense de 1921 e sua substituição pelo acordo de 1984 na Itália e da revogação da concordata espanhola de 1953 e sua substituição pelos acordos de 1976 e 1979, a Concordata portuguesa tornou-se manifestamente anacrónica e geradora de anacronismos. O mesmo acontece depois da descolonização com o Acordo Missionário, que desenvolveu os artigos 26.º a 28.º da Concordata.
Quanto à Lei n.º 4/71, ela nunca pretendeu estabelecer a igualdade de direitos em matéria religiosa. Nas palavras do Parecer da Câmara Corporativa que contribuiu fortemente para a redacção da Lei: "Uma coisa é a liberdade religiosa e a igualdade dos cidadãos perante a lei, seja qual for o seu credo, que se referem à eliminação de toda a coacção em matéria de religião e constituem o mínimo igualmente exigível do Estado por todas as confissões reconhecidas. Outra coisa é o conjunto de providências que, excedendo o mínimo de tutela exigível por todas em obediência ao princípio da imunidade de coacção, se considerem aplicáveis apenas a algumas delas" Antunes Varela, Lei da Liberdade Religiosa (Lei n.º 4/71 de 21 de Agosto de 1971) e Lei de Imprensa (Lei n.º 5/71 de 5 de Novembro de 1971), Coimbra, Coimbra Editora, 1972, p. 86 (a nota de pé de página que acompanha o texto citado revela que quando o relator fala de "algumas" tem apenas em vista a Igreja Católica .
O referido "mínimo" são os direitos negativos individuais de liberdade religiosa. É certo que a Lei n.º 4/71 declarou reconhecer outros direitos, inclusivamente direitos colectivos de liberdade religiosa, às confissões religiosas não católicas reconhecidas, (Jorge Miranda, no parecer sobre a primeira versão do anteprojecto , enviado pela Conferência Episcopal como anexo à sua resposta, nota com razão, que deve ter-se por inconstitucional só ser consentida a confissões reconhecidas nas condições estabelecidas na base IX) a construção ou instalação de templos ou lugares destinados à prática do culto (base XVII). Haveria que acrescentar a base VII, na parte em que repete o artigo XXI da Concordata, pelas razões do citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 423/87. Não cabe aqui discutir a constitucionalidade das