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0003 | II Série A - Número 006S | 03 de Dezembro de 1999

 

várias normas da Lei n.º 4/71 , pelo que a citação feita é mais reveladora do espírito constitucional ao tempo prevalecente do que do conteúdo da lei e da própria proposta de lei da Câmara Corporativa. Mas a verdade é que nenhuma confissão não católica foi, antes de 25 de Abril de 1974, concretamente reconhecida ao abrigo da lei e da legislação que a regulamentou (Decreto-Lei n.º 216/72, de 27 de Junho). Deste modo, tudo ou quase tudo se passou como se a Lei n.º 4/71 nunca tivesse existido.
Uma das explicações para a não aplicação da Lei n.º 4/71 reside certamente na manutenção de exigências, que vinham do Código Administrativo de 1940 (artigo 449.º) e que representavam um círculo inextrincável: segundo o Código Administrativo e a Lei n.º 4/71, uma associação para se constituir tinha de demonstrar que se constituíra de harmonia com normas de hierarquia e disciplina de religião a que pertenceria; mas a religião, ou confissão, na terminologia da Lei n.º 4/71, para ser reconhecida juridicamente, teria de se constituir ela própria de acordo com normas de uma religião ou confissão reconhecida, se não estaria sujeita às sanções previstas para as associações secretas, proibidas pelo Decreto-Lei n.º 39660, de 10 de Maio de 1954. Por outras palavras: a Lei n.º 4/71 não previa a possibilidade da constituição originária de uma confissão em Portugal, nem fornecia os critérios do reconhecimento de uma confissão estrangeira, pelo que se tornava impossível demonstrar a conformidade com as normas confessionais do estabelecimento da confissão em Portugal. Vontade de quebrar o círculo não existia na Administração, tanto mais que as confissões não católicas eram consideradas menos nacionalistas, se não estrangeiradas, o que durante a guerra colonial se agravou com a suspeita de que apoiavam os movimentos independentistas.
A liberalização chegou com a revolução de 25 de Abril, através da aplicação às associações religiosas do regime geral das associações civis do Decreto-Lei n.º 594/74, de 7 de Novembro. Com efeito, no registo das confissões religiosas reconhecidas criado pelo artigo 11º do Decreto n.º 216/72 para dar execução à Lei n.º 4/71, só depois de 25 de Abril de 1974, por despachos de 12 de Junho de 1974, foram inscritas as duas únicas confissões que tinham requerido, já em 1972, a inscrição, por estarem regularmente instituídas, antes do início da vigência da Lei n.º 4/71, associações religiosas delas integrantes (pelo que se deviam considerar reconhecidas, segundo o artigo 12.º do Decreto): a Igreja Evangélica Metodista Portuguesa e a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Pouco depois (Despacho de 1 de Julho) foi inscrito como associação o Exército de Salvação, cujo processo se arrastava desde 1972. Todas as restantes pessoas colectivas entretanto inscritas - são no total 459 em Março de 1998 - foram-no como associações civis, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 594/74. Como o modelo desenhado pelo Código Civil para as associações civis, com assembleia geral, direcção e conselho fiscal, é claramente desajustado à efectiva organização das comunidades religiosas, estas têm um estatuto jurídico que desfigura e oculta a sua realidade sociológica. No registo, que se transformou num registo de associações religiosas (isto é civis com fins religiosos) não católicas, não se distinguem as igrejas e outras comunidades religiosas das instituições por elas criadas e das federações em que se associam.
Além da liberalização do reconhecimento de associações religiosas, também se avançou decisivamente para uma maior conformidade com a Constituição noutras matérias. Destacam-se o acesso à segurança social, às escolas e à televisão:
- em 1983, pelo Decreto Regulamentar n.º 5/83, de 31 de Janeiro, ficaram obrigatoriamente abrangidos pelo regime geral da previdência, além dos "membros do clero secular e religioso da Igreja Católica", os "ministros das outras igrejas, associações e confissões religiosas legalmente existentes nos termos da lei" (artigo 1.º);
- em 1989, o Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de Agosto, prevê (artigo 7.º) uma disciplina optativa da "Educação Moral e Religiosa Católica (ou de Outras Confissões)", que, nas condições do Despacho Normativo n.º 104/89, de 7 de Setembro, passou a poder ser ministrada nas escolas dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário por professores propostos pelas "diversas confissões religiosas com implantação em Portugal";
- o Despacho Normativo n.º 104/89 foi, por último, revogado pelo Decreto-Lei n.º 329/98, de 2 de Novembro, que estende esta possibilidade a todo o ensino básico, além do ensino secundário;
- em 1997, mediante acordo entre a Radiotelevisão Portuguesa, SA e a Comissão do Tempo de Emissão das Confissões Religiosas, foram finalmente fixados e aplicados critérios de distribuição do tempo de emissão atribuído às confissões religiosas no serviço público da televisão pelo artigo 25º da Lei n.º 58/90, de 7 de Setembro.
Um desenvolvimento normativo importante na matéria é o do direito internacional, especialmente da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950, os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Económicos, Sociais e Culturais de 1966, a Convenção sobre os Direitos dos Trabalhadores Migrantes de 1990, etc. Embora o direito internacional seja imediatamente aplicável em Portugal, a prática jurídica portuguesa não tem sido afectada por esse desenvolvimento.

II
Objectivo e âmbito do projecto

Demonstrada a necessidade de revisão ou reforma dos diplomas fundamentais em matéria de liberdade religiosa cabe perguntar por onde começar. Embora na Itália e na Espanha se tenha optado por rever a Concordata e só depois se tenha procedido à reforma legislativa, em Portugal a resposta só pode ser: por onde se pode, logo que se possa. Ora, a reforma da Lei n.º 4/71 é o passo que pode ser já dado. É também o que faz mais mister, porque é nesse campo que há queixas de violação dos direitos de liberdade religiosa, e sobretudo de discriminação religiosa, já expressas perante órgãos de soberania (cfr., por exemplo, a petição n.º 159/VI (2ª), DAR, 2º C, de 12 de Fevereiro de 1993, p.129). As eventuais dificuldades no processo de revisão da Concordata poderão ter sido diminuídas uma vez que se pediu a própria participação da Igreja Católica no processo de consulta e discussão do Anteprojecto, o que decerto facilitará negociações futuras, criando o clima de entendimento indispensável para qualquer eventual revisão. Deste modo, estando embora de acordo com o Professor Antunes Varela, quando disse, que a Concordata é um instrumento jurídico-político que necessita de urgente revisão por assentar sobre pressupostos históricos ultrapassados pelas circunstâncias, não o acompanhamos