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0245 | II Série A - Número 014 | 13 de Janeiro de 2000

 

2 - A violência contra as mulheres constitui hoje uma problemática central, não necessariamente devido ao recrudescimento do fenómeno mas fundamentalmente às recentes transformações sociais e especificamente no campo da família (movimento de desinstitucionalização e privatização que contribuíram para o recuo da nupcialidade, aumento de famílias monoparentais, uniões livres e modelos de companheirismo) que teriam contribuído para a redefinição do papel social das mulheres e para a conquista de uma nova integração social.
3 - Pelo menos parte do aumento da violência familiar, hoje oficialmente registada em Portugal, deve-se ao repúdio de situações até então toleradas e a uma maior transparência das relações familiares, o que confere visibilidade a actos que até aqui ficavam escondidos no universo fechado em que a família se estruturava (segundo artigo do Diário de Notícias, de 9 de Março de 1999, de Outubro de 1998 a Janeiro de 99 a PSP e a GNR registaram 2889 casos de violência doméstica).
4 - A violência relativamente às mulheres tem sido objecto da atenção de sociólogos, sendo que diversos estudos, entre os quais se contam um realizado pela CIDM, analisam as diversas situações de violência. Sem que haja dados que permitam concluir se a violência dentro da família aumentou, regista-se que a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) revelou recentemente números que nos indicam que muitas famílias se tornam um palco privilegiado de violência. Segundo a referida Associação, sem contar com os pedidos de socorro pela linha telefónica recebidos em Lisboa, a mesma recebeu um total de 3126 vítimas, três quartos das quais eram mulheres, que em 45% dos casos indicaram o cônjuge como autor do crime, tendo 15% das mulheres identificado outro familiar como agressor. Encarando o problema pelo prisma oposto (mulher agressora), o estudo da socióloga Elsa Pais vem confirmar que no meio familiar é a mulher que é vítima de agressões, a que responde, por vezes, com o cometimento de um crime grave (e.g. homicídio conjugal).
5 - A aplicação do direito durante muito tempo reduziu-se exclusiva mente à esfera pública, auto-excluindo-se da esfera privada, do domínio da família e da conjugalidade;
6 - Actualmente o Código Penal aponta no sentido da violência ser considerada crime semi-público. Esta alteração constituiu um passo fundamental para a regulação social dos comportamentos do campo privado da família. A publicização ora proposta poderá contribuir para que a violência familiar saia do espaço privado em que se tem inscrito e se possa finalmente constituir como alvo de intervenção das instituições públicas que até há bem pouco tempo se demitiam das suas responsabilidades nesta matéria.
7 - Os avanços da lei, no sentido da igualdade, da não discriminação e da penalização das ofensas corporais, mesmo entre cônjuges, ainda não se integraram no quotidiano das pessoas, sendo muitas vezes as polícias a dissuadir as mulheres de prossecução da denúncia, como alerta Nelson Lourenço, em Violência contra as mulheres, edição da CIDM, por Nelson Lourenço, Manuel Lisboa e Elzas Pais.
8 - Na IV Conferência Internacional sobre a situação das mulheres de Beijing foi incluída a prevenção e o combate da violência contra as mulheres na sua plataforma de acção, tendo sido recomendado aos governos que "legislem, apliquem as leis e examinem-nas periodicamente com vista a assegurar que contribuem eficazmente para eliminar a violência relativamente às mulheres, pondo o acento na prevenção da violência e na perseguição dos delinquentes". Os governos deveriam ainda "assegurar a protecção das mulheres contra a violência, dar-lhes acesso a recursos justos eficazes, prevendo, nomeadamente, a indemnização e a readaptação das vítimas e a reinserção dos delinquentes e "fornecer as estruturas de acolhimento e de apoio financeiro às mulheres e às jovens vítimas de violências, assim como conselhos médicos, psicológicos e outros, tal como assistência judiciária gratuita ou pouco cara, em caso de necessidade, e dispensar-lhes a assistência pretendida para as ajudar a encontrar meios de subsistência".
9 - Se deveria existir um primeiro passo para prevenir a violência familiar dos homens este deveria consistir em reconhecer que esta violência não é um assunto de família. A doutrina da esfera privada protege de forma bastante evidente os agressores do controlo da sociedade. É certo que o direito de cada um à sua esfera individual é constitucionalmente irrefutável, mas esta exigência de cada indivíduo de ver o Estado respeitar a sua vida privada deve ser claramente limitada onde a intervenção do Estado é requerida para garantir os direitos fundamentais.
10 - Esta constatação que nos parece evidente de um ponto de vista dogmático, não o é na prática. São numerosos os funcionários de polícia que recusam imiscuir-se no que consideram ser "assuntos de família". Segundo a opinião geral, cada um é responsável pela organização da sua vida privada e logo de decidir com quem quer viver. As relações de família afiguram-se complexas e com alguma falta de transparência, razão porque alguém já afirmou que a "casa é um dos lugares mais perigosos das sociedades modernas".
11 - É a esse título que a política estatal é chamada a tomar uma posição inequívoca a fim que a intervenção policial nos casos de actos de violência no seio das famílias não dependa da apreciação pessoal destes últimos: a violência nas famílias não é um problema pessoal das pessoas implicadas mas, sim, um problema de segurança pública e logo das autoridades estatais responsáveis pela segurança e salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos.
12 - Isto significa igualmente que no seio da esfera familiar, como no exterior, as mulheres vítimas das violência de um homem não devem ficar entregues a si próprias, mas que têm o direito não somente de ajuda solidária mas também de medidas públicas a fim que a sua segurança e dignidade pessoal lhes sejam restituídas.
A iniciativa em apreço vem ao encontro das sugestões das entidades que lidam concretamente com esta temática, designadamente a CIDM e a APAV.
Sem me afastar da objectividade que um relatório desta natureza deve merecer, entendo que esta matéria deverá ser objecto de ponderada reflexão por parte de todas as entidades, organizações e especialistas na área, sugerindo-se que numa fase de especialidade a comissão competente (ou comissões competentes) organize uma audição parlamentar por forma a que se analisem de forma cuidada todas as implicações sociais e jurídico-penais que a questão encerra, questão, aliás, que não é pacífica, já que na reunião ocorrida no dia 10 de Janeiro de 2000 na sala do Senado, promovida pelo BE, sobre estas matérias esteve patente que existe alguma reserva por parte de certas associações quanto a publicização. Entendem estas que a medida proposta por si só nada resolve, dever-se-ia antes optar por responsabilizar o MP, as assistentes sociais, psicólogos para a utilização dos mecanismos legais existentes e para uma estratégia de prevenção junto das crianças por forma a quebrar o ciclo de violência.
A alteração da natureza processual deste tipo de crime é apenas um ponta do iceberg imenso que constitui o fenómeno