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0481 | II Série A - Número 023 | 03 de Março de 2000

 

marginalizadas, que consomem heroína injectada. Por outro lado, desenvolve-se um novo mercado de consumo por parte de cidadãos integrados socialmente, que fumam heroína com elevado grau de pureza, sem a ocorrência de crime associado ao consumo ou recurso aos serviços de saúde. Mantendo-se fora das estatísticas oficiais, o perfil destes consumidores só é conhecido pelos seus fornecedores.
Os novos mercados da heroína mostram a mudança no funcionamento das redes do narcotráfico. Os Estados Unidos - que representam o segundo maior destino - continuam a braços com o aumento do consumo, no momento em que as redes latino-americanas que abastecem o país de cocaína vão ganhando terreno na distribuição de heroína. Segundo dados publicados pela Interpol, a heroína mexicana representa já 5% do mercado total norte-americano. Da mesma forma, já não é novidade a apreensão em solo europeu de heroína produzida na Colômbia. O relatório do OGD referente a 1998 alerta para o facto deste politráfico não se restringir apenas às drogas ilegais, mas a tudo o que tem procura e margens de lucro generosas: é o caso dos materiais nucleares na Rússia e na Turquia; das armas nos Balcãs e em África; dos cigarros na Europa, Ásia ou América Latina; dos automóveis roubados na Europa de Leste ou Médio Oriente; ou dos imigrantes ilegais para a Europa ou Estados Unidos.

Drogas: legais vs ilegais

Os efeitos para a saúde do uso das drogas legais que estão disseminadas por todo o mundo não são comparáveis com nenhuma das drogas ilegalizadas. Veja-se o caso do álcool ou do tabaco, responsáveis por milhões de mortes todos os anos e para os quais a hipótese de proibição à escala mundial é posta de lado de forma categórica. A Associação Portuguesa de Prevenção do Alcoolismo calculava em 1995 que um em cada dez portugueses é dependente do álcool, afectando com essa dependência de forma indirecta pelo menos mais uma pessoa em cada dez.
O álcool é directamente responsável pela tragédia que se vive nas estradas portuguesas e nas cenas de violência doméstica em muitos lares. Mas os sucessivos governos desdobram-se em apoios ao sector vitivinícola e fomentam a expansão das rotas de comércio dos vinhos portugueses e a sua produção em massa. Muitos primeiros ministros e presidentes da república aceitam mesmo participar em cerimónias de confrarias, jurando fidelidade a essas drogas e aproveitando a excentricidade do vestuário para fazer as delícias dos fotógrafos. Não se compreende o que os faz penalizar o cidadão que planta cannabis no seu quintal para consumo próprio, supondo-se que os efeitos para a saúde são incomparavelmente menores do que o consumo de bebidas alcoólicas, hoje estimuladas pela publicidade omnipresente e promovidas a imagem de marca de um país como Portugal.
O mesmo se passa com o tabaco, directamente responsável pelas mortes devido a problemas cardio-vasculares ou pelo cancro do pulmão. Apesar da cruzada moralista que, tal como no princípio do século em relação às drogas hoje ilegais, faz hoje o seu caminho nos Estados Unidos, parece estar ainda longe um cenário de proibição. Mas é curioso ver os seus opositores argumentarem contra a proibição do tabaco com um discurso que se aplica na perfeição contra os efeitos proibicionistas em relação à heroína, à cocaína ou à cannabis. Claro que quando inquiridos sobre a sua posição em relação a este problema, as respostas já são diferentes e voltam os chavões da "guerra à droga que é preciso vencer", dos "traficantes sem escrúpulos", ou do "investimento na prevenção que há que reforçar".
A hipocrisia que serve de base a esta duplicidade de discursos não pode ser separada do poder económico que suporta cada um dos negócios que aqui se discutem. É evidente que para os lobbies do álcool e do tabaco interessa que as estatísticas do consumo de drogas ilegais continuem a um nível preocupante e que o investimento político e mesmo orçamental do Estado seja encaminhado para a miragem do "combate à droga". Enquanto assim for, a sociedade vai continuar a ser encaminhada para utilizar as drogas de que dispõe sem ser alvo de condenação, e as formas de evasão continuarão a estar condicionadas pelas drogas toleradas pelo sistema, lucrando com isso o próprio Estado, através dos impostos sobre o tabaco e o álcool, e as empresas que as produzem e comercializam.

II
Uma nova abordagem do problema da toxicodependência

Com esta alteração legislativa, é dado mais um passo no sentido de uma nova abordagem do problema da toxicodependência, assente exclusivamente numa perspectiva de saúde pública, afastando os consumidores do circuito clandestino, da marginalidade e das práticas de risco no consumo das substâncias em causa. Actualmente, mais de dois terços da população prisional está condenada por pequenos crimes associados aos preços inflacionados das drogas ilegais. Ao encaminhar o toxicodependente para programas de acompanhamento com prescrição médica ou de tratamento, esta nova política proposta neste projecto de lei procura avançar na resposta ao drama nas prisões portuguesas.
Em primeiro lugar, pretende-se operar uma separação de mercados entre as substâncias inscritas na tabela I-C (cannabis e seus derivados) e as restantes, dado que o consumo das primeiras não se encontra directamente associado a efeitos despersonalizantes e acarreta iguais ou menores riscos para a saúde pública do que outras substâncias legais, como o álcool ou o tabaco.
Em segundo lugar, é intenção desta alteração legislativa enquadrar no sistema público de saúde a distribuição de substâncias como a heroína ou a cocaína aos cidadãos que delas necessitem para suprir o estado de abstinência, sob acompanhamento médico e mantendo o controlo estatal do comércio, importação e distribuição dessas substâncias.

Prevenção e articulação dos serviços de saúde

Uma aposta séria na prevenção, em particular dirigida à juventude, sem moralismos mas com informação acerca dos efeitos de cada substância para a saúde, deve estar no centro desta nova política, nomeadamente aproveitando os recursos e verbas transferidas do aparelho repressivo e do sistema prisional. Neste sentido, subscrevemos a análise feita no relatório da Comissão de Estratégia de Combate à Droga: "Exige-se uma alteração radical da política de informação relativamente às drogas. A informação deve evitar dois perigos em que frequentemente tem incorrido: o da banalização e o da diabolização. A desvalorização dos riscos que os consumos pressupõem aparece de braço dado com a insistência numa informação desadequada ao contexto e à população -alvo, logo, sem credibilidade (ex. cartaz dizendo "defende-te, a droga mata", numa atmosfera de belicismo inconsequente, ou campanhas em tudo semelhantes ao já famoso "Just say no", tão do agrado de alguns elementos influentes da sociedade americana). A culpabilização