0482 | II Série A - Número 023 | 03 de Março de 2000
e discriminação sistemática dos toxicodependentes fazem-nos deslizar do estatuto de cidadãos com deveres, direitos e um problema grave a resolver para o de "objectos-problema", cujo afastamento da "parte sã" da sociedade passa a ser um imperativo na tentativa de impedir o "contágio"."
Da mesma forma, é necessária uma maior disponibilidade financeira para os tratamentos de recuperação, sobretudo dos toxicómanos dependentes de heroína e de cocaína. Libertam-se assim as energias para tratamentos mais demorados de pelo menos um ano. A lógica central deste "núcleo duro" do tratamento seriam as Comunidades Terapêuticas de médio e longo curso - seis meses a um ano - e não como agora as consultas avulsas.
À lógica das desintoxicações-recaídas repetidas devemos opor o argumento do tratamento mais consequente para os heroinómanos em programas prolongados, com equipas integradas e multidisciplinares, com valências médicas, psicológicas, psicoterapêuticas, socioterapêuticas, familiares e comunitárias.
Este sistema só será adequado se for realizado em locais próprios, ligados às estruturas de saúde. O modelo mais adequado deve preservar o que já existe, sem no entanto "invadir" os centros de tratamento com a prescrição de drogas legais ou substitutas, como a metadona.
No caso da distribuição da metadona é importante que o circuito a definir não seja misturado com a actividade dos centros de tratamento. Devem ser criadas estruturas intermédias fora dos Centros de Atendimento a Toxicodependentes (CAT), por exemplo sediados em hospitais públicos ou em locais próprios onde exista um registo informatizado dos utentes - de forma a evitar dosagens repetidas - e elaboração de análises toxicológicas prévias - para evitar "overdoses" por acumulação com outros opiáceos. Estes centros podem albergar outros programas de substituição para além da metadona e devem ser alargados desde já ao meio prisional, a par da prometida e esquecida proposta de distribuição de seringas no interior das cadeias.
Da mesma forma, as estruturas a criar para efeito de disponibilização de heroína para toxicodependentes devem obedecer às mesmas regras - com registo informatizado e sob vigilância médica, e separadas dos CAT, dos locais de distribuição de metadona e de quaisquer outras soluções que tenham como objectivo o tratamento dos toxicodependentes.
Algumas destas estruturas podem ainda exercer funções de supervisão das chamadas "casas de xuto", que devem ser instaladas desde já nos locais de consumo mais numeroso, em bairros como o Casal Ventoso e outros. Estas "casas de xuto", instaladas por iniciativa pública e sob controlo médico, permitem prevenir os riscos da actual ilegalidade inerente ao tráfico, que não garante a segurança do consumidor nem a qualidade ou composição da substância a ingerir. Quer seja num cenário de proibição ou de legalização, estes locais asseguram condições de higiene, nomeadamente através da distribuição de kits com os materiais necessários ao consumo que existe hoje em dia à vista de todos os que vivem ou passam pelas zonas e bairros de consumo.
A criação e desenvolvimento de centros de tratamento livres de drogas deve ser outra das prioridades do sistema. Nestes centros, que podem coincidir com os actuais CAT, os toxicodependentes podem atravessar uma fase de desintoxicação com uso de medicamentos, seguindo-se uma outra fase com uso de antagonistas opiáceos e, em complemento ou alternativa, a psicoterapia. Para além destes centros é igualmente urgente alargar a rede de comunidades terapêuticas estatais, assumidamente desmedicalizadas, recorrendo apenas ao uso da psicoterapia. Pela simples razão de que hoje em dia não existe essa rede - funcionam apenas duas comunidades terapêuticas do Estado português, com 40 camas no total -, trata-se de uma reivindicação básica para que o tratamento seja encarado como uma prioridade.
Portugal com voz própria nos foruns internacionais
Com esta nova redacção da lei, Portugal passa a assumir uma responsabilidade maior no debate internacional sobre toxicodependência e controlo de estupefacientes. Ao tomar a iniciativa de deixar de considerar o consumidor de drogas como um criminoso, de separar os mercados das drogas e de apostar no controlo médico do consumo dos toxicodependentes, o Estado português não abandona a cooperação internacional no combate ao tráfico ilegal, antes mostra que a melhor forma de vencer esse combate é retirar o mercado ao narcotráfico, orientando o esforço repressivo para a identificação das transações de capitais suspeitas, nomeadamente as que envolvem branqueamento de capitais e a sua posterior introdução em actividades lícitas.
Neste contexto, os organismos que representam o país nos fóruns internacionais sobre o tema devem procurar aprofundar o debate sobre as políticas alternativas à repressão, no sentido de estabelecer pontes e dar apoio com base na experiência portuguesa aos países-membros que renunciem igualmente a uma prática proibicionista que, a par dos trágicos efeitos para a saúde pública e para a vida de milhões de pessoas, vem desresponsabilizando os Estados e as sociedades do seu papel na prevenção da dependência de substâncias, com efeitos bem mais gravosos desse ponto de vista, e cuja permanência no mercado legal não é posta em causa.
O comércio passivo dos derivados de cannabis
No que respeita à alteração ao Decreto n.º 61/94, que regulamenta a Lei n.º 15/93, ela justifica-se pela nova abordagem da questão da toxicodependência que se impõe ao fim de nove décadas de proibicionismo e de sete anos de vigência daquela lei.
Com esta alteração, é dado o enquadramento legal à separação dos mercados das drogas, através de instituição do comércio passivo das substâncias incluídas na tabela I-C, sujeito às regras, ao controlo e à fiscalização dos organismos competentes por lei.
O comércio passivo dos derivados da cannabis visa suprimir as regras que no comércio actual constituem um encorajamento à produção, venda ou consumo. Os seus princípios fundamentais opõem-se às características do comércio ordinário, da livre concorrência, da liberdade do comércio e indústria, de modo a privar a rede de distribuição de toda a agressividade comercial.
A exclusão das regras de direito de concorrência passa pela criação de um controlo da produção, importação e distribuição de cada tipo de droga. Certos atributos do comércio clássico são assim recusados ao distribuidor de substâncias controladas. É o caso do direito da propriedade das marcas e do direito ao símbolo que permite a fixação de uma clientela. A recusa do reconhecimento de marca justifica-se pelo facto de a marca comercial ser actualmente um poderoso meio de promoção de produtos. Isto vale não só para a publicidade comercial, inconcebível para os produtos deste tipo, como também para outras formas de propaganda directa (promoção, marketing...) ou indirecta (patrocínio, mecenato...) utilizados nos media.