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1773 | II Série A - Número 054 | 04 de Maio de 2001

 

Este altíssimo nível de consumo de medicamentos não é uma demonstração de desenvolvimento; antes pelo contrário prova a extrema vulnerabilidade da procura à determinação pela oferta da indústria farmacêutica, o predomínio da sobreprescrição pelos médicos, a sobrevivência de uma cultura consumista e, mesmo, a medicalização extrema de alguns problemas com causas sociais (como o stress).
Ora, um inquérito do Departamento de Psicologia da Universidade do Minho, a partir de uma amostra de 3507 utentes e cujos resultados foram conhecidos no início de 2001, prova que os doentes sem dinheiro para medicamentos, e em particular os idosos com falta de recursos, não se tratam mesmo que lhes tenham sido prescritos medicamentos.
O Inquérito Nacional de Saúde de 1987 estabeleceu uma relação entre estado de saúde e a situação social (tomando como proxy o nível de escolaridade), demonstrando que essa relação inversa entre acessibilidade e necessidade está estruturada socialmente. Segundo Cipriano Justo, em 1993 a mortalidade infantil era de 8,7 por 1000, mas entre as mães analfabetas atingia o valor excepcional de 19,6, enquanto que entre as mães com curso superior era unicamente de 3,7 por 1000. O mesmo autor indica que, em 1982, a taxa de mortalidade geral era pelo menos duas vezes superior nos segmentos inferiores da pirâmide social, e três vezes no caso das doenças cardiovasculares (Cipriano Justo, O Estado das Coisas de Estado - Políticas de Saúde em Portugal, 2001). Embora estas diferenças se tenham reduzido, continuam a ser a marca da profunda desigualdade social no acesso à saúde.
A reforma do sistema de saúde e, em particular, do Serviço Nacional de Saúde que o nucleia, é por isso uma prioridade nacional. Essa reforma de fundo é o objectivo das propostas de lei de bases da saúde e outras que o Bloco apresentou.

II - Pretendiam os primeiros constituintes que o Serviço Nacional de Saúde fosse universal, geral e gratuito. Esse desígnio nunca foi cumprido na íntegra. O SNS é universal desde 1978 e geral desde 1984, com a integração dos serviços médico-sociais das antigas caixas de previdência, mas nunca foi gratuito, nem tendencialmente - o que suporia que se aproximaria historicamente da gratuitidade, o que é exactamente o contrário do que se passa. Actualmente, o SNS abrange 76% dos portugueses, tem fronteiras frequentemente indistintas com os interesses privados, tem vindo a ser degradado pela sub-orçamentação, pelo sub-financiamento e pela falta de rigor de gestão e de avaliação. Dessa situação é testemunha a inexistência de relatórios e contas deste serviço desde 1998, o que configura uma situação de grande anormalidade.
Por outro lado, estas deficiências do SNS revelam a fragilidade dos cuidados de saúde me Portugal, que são em grande medida pagos pelas famílias, que suportam cerca de 40% da despesa em saúde, o que é aproximadamente o dobro do esforço verificado em países desenvolvidos com os quais Portugal se compara. Como constata Correia de Campos, "Portugal é dos países da União Europeia em que é mais baixo o peso relativo da componente pública e mais elevado o peso relativo da componente privada, no financiamento das despesas de saúde" (Correia de Campos, Rastrear o Gasto e o Défice, INA, 2001).
Os gastos totais com saúde são hoje cerca de 8.2% PIB, confrontados com cerca de 9.6% em França, 8.6% na Holanda ou 14.2% USA (592 contos por habitante, para 165 contos em Portugal), e de 10% de média na UE. Entretanto, cerca de 34% das despesas do SNS são transferências para privados, e temos das medicinas privadas mais caras da Europa. Globalmente gastamos de menos na saúde e o que gastamos, gastamos mal - e é por isso mesmo que uma lógica estritamente economicista ou contabilística da reforma do sistema de saúde é inoperacional e errada, se não for norteada por uma política de qualidade dos cuidados de saúde e de investimento em saúde.
A crise do SNS tem por isso sido analisada e compreendida como uma expressão de um profundo défice democrático. O ex-Director Geral da Saúde, Constantino Sakellarides, apresentava em finais de 1999 o seguinte diagnóstico dessa crise:
"O SNS é hoje um empreendimento que movimenta cerca de mil milhões de contos por ano. Emprega directamente mais de cem mil pessoas. Movimenta importantíssimos sectores da sociedade e da economia portuguesa. E, no entanto, tem sido aparentemente pacífico que este conglomerado de grandes proporções e complexidade, financiado pelos contribuintes através do Estado, tenha crescido consideravelmente durante anos sem as mínimas condições de racionalidade:

- Sem uma estratégia de desenvolvimento explícita com objectivos e mecanismos de implementação dirigidos aos grandes problemas de saúde do País;
- Sem adopção de formas de remuneração do trabalho profissional em saúde que respeite as suas especificidades;
- Sem uma política de promoção da qualidade;
- Sem uma política de recursos humanos que evitasse por antecipação o excessivo envelhecimento das profissões de saúde e as suas exigências específicas, e uma política para as profissões de saúde;
- Sem uma gestão profissionalizada na identificação e controlo de desperdícios que comprometem recursos essenciais;
- Sem qualquer planificação para a modernização da saúde pública portuguesa;
- Sem a concepção de um sistema de informação de saúde capaz de contrariar uma já longa "tradição" de dados colhidos sem objectivos precisos, que se foi degradando por falta de análise e utilização apropriada, incapaz de produzir indicadores de desempenho e resultado que façam sentido.

É destas graves omissões que tem sofrido ao longo dos anos o sistema de saúde português." (Constantino Sakellarides, A Saúde em Tempo de Mudança, relatório da DGS, Novembro de 1999).
Dessas omissões herdamos um sistema de saúde com gravíssimos problemas.
Portugal, que tem tantos médicos por habitante como a França, e mais do que o Reino Unido, a Suécia, a Irlanda ou a Finlândia (3,2 médicos, mas está em último lugar com os seus 0,8 farmacêuticos e 0,2 dentistas por 1000 habitantes) tem, apesar disso, uma distribuição geográfica inapropriada: cerca de um quarto dos médicos está na região de Lisboa (assim a relação entre os médicos e a população é de 1/176 em Lisboa mas de 1/700 na Covilhã).
A distribuição etária é igualmente preocupante: como 41% dos actuais médicos se reforma em 2005, e dentro de 15 anos cerca de três quartos dos actuais médicos já não estará a trabalhar, o sistema tornar-se-à pura e simplesmen