1775 | II Série A - Número 054 | 04 de Maio de 2001
bilidade integrada nos hospitais e a definição das funções Agência nas ARS.
A presente proposta recupera essas iniciativas e dá-lhes corpo no contexto da definição geral das bases do sistema de saúde.
Ao apresentar este projecto de lei de bases da saúde pretende o Bloco de Esquerda convocar o debate nacional sobre a reforma urgente da saúde e do SNS, recuperar as iniciativas recentes que para isso contribuíam, definindo critérios de planeamento, controlo e gestão descentralizada no SNS, aumentando a participação dos cidadãos e, portanto, a adequação entre os recursos e as prioridades.
V - A saúde não pode ser tratada simplesmente como um mercado. A ser assim seria das mais irracionais dos mercados, dada a extrema assimetria de informação e de poder entre os seus operadores e entre eles e os utentes, tratando-se ainda de uma economia oligopolizada, isto é, com forte poder de condicionamento por parte de alguns dos operadores. Mais ainda: a informação é predominantemente dirigida e controlada pela indústria farmacêutica, e é um dos instrumentos do seu poder económico que os governos não quiseram controlar nem limitar.
Por parte dos poderes públicos a dificuldade de controlo orçamental é também notória, dado que existe uma separação óbvia entre o prestador do serviço que toma a decisão terapêutica e a decisão económica que a pretende regular.
Por tudo isto, o presente projecto de lei rejeita vigorosamente a ideia liberalizadora e privatista que tem vindo a ser defendida e que constituiria o naufrágio do SNS, para abrir as portas a uma generalização de uma medicina socialmente ainda mais discriminadora, o que constituiria uma forma brutalmente injusta de anular o direito universal à prestação dos cuidados de saúde.
O resultado das iniciativas privadas tem sido, aliás, uma demonstração categórica da sua incapacidade em fornecer um serviço de qualidade a preço socialmente aceitável.
No caso do Hospital da Cruz Vermelha foi mesmo preciso um negócio com o Governo que garantiu que, em vez do recurso natural ao Hospital do Coração e a Santa Marta, os cuidados em cardiologia pediátrica e urologia seriam desviados para a Cruz Vermelha. Ao mesmo tempo, o Governo decidiu, em 1998, que a Partest compraria 45% deste hospital privado, a um preço que decuplicava o seu valor de mercado (as acções foram compradas a 10 400 escudos, quando valiam 1006), o que permitiu regularizar o passivo injectando desta forma 2,3 milhões de contos na empresa, e estabelecendo ainda um acordo por cinco anos que garante 80% da facturação da unidade.
O Tribunal de Contas publicou um relatório em que denuncia este acordo, considerando que "não cabe ao Estado apoiar uma instituição privada com dinheiros públicos para sanar passivos para os quais o Estado em nada contribuiu, para mais desconhecendo-se a origem de tal situação".
No Hospital da Feira, que foi entregue pelo Governo a um regime de administração segundo regras empresariais privadas, foi sendo criada uma cultura de irresponsabilidade social que leva a administração a considerar que o poder de compra deve discriminar os tratamentos aos doentes.
Assim, na deliberação do conselho de administração n.º 5, de 20 de Setembro de 1999, escreve-se que "o interesse do doente é também salvaguardado, pois é legítimo os mais ricos poderem pagar para escolher o médico e serem internados em melhores condições hoteleiras, ao mesmo tempo que, sendo atendidos e tratados fora dos tempos normais de trabalho do hospital, estão potencialmente a libertar vagas para outros a serem tratados nesses períodos".
A definição das regras de gestão do SNS deve permitir evitar estas situações. Por outro lado, o serviço público deve cobrir todas as áreas em que são necessários cuidados de saúde, nomeadamente com a inclusão de dentistas nos hospitais e centros de saúde, e com a expansão para aqueles sectores em que o privado continua a dominar: a radiologia, as análises clínicas, a fisioterapia, a oftalmologia, a hemodiálise e, em geral, as consultas.
Assim, pretende-se iniciar a separação clara entre os sectores público e privado no sistema de saúde, objectivo que tem sido ao longo dos anos anunciado e proposto por diversas forças políticas e governos, sem que, no entanto, tenha jamais sido concretizado de forma conclusiva. O combate ao peso dos lobbies no sector da saúde - que dominam ou influenciam um sector e um mercado que é dos mais importantes do ponto de vista da economia nacional - só pode ser desenvolvido em função dessa separação, que é uma prioridade democrática. Mas os lobbies presentes no sistema de saúde são poderosos e têm elevada capacidade de adaptação, sejam os interesses corporativos de profissionais de saúde sejam os representantes dos interesses económicos das farmácias privadas ou dos produtores de medicamentos. Por isso mesmo, deve-se definir regras, incluindo a da transparência das decisões e da articulação das medidas de controlo e de gestão, para garantir os objectivos sociais de um sistema de saúde de qualidade como condição de cidadania.
A experiência tem indicado que a indústria farmacêutica, em particular, tem sido capaz de contornar as políticas do medicamento, seja lançando novas moléculas, seja determinando o mercado dos genéricos, seja usando estratégias de preço ou de volume para influenciar a procura. A resposta das políticas públicas a este poder de mercado deve assentar na articulação de múltiplos elementos de gestão dos sistema de saúde, em particular garantindo a transparência das decisões, a informação sobre os cuidados de saúde, os seus orçamentos e os seus custos, de modo a definir um objectivo social para a saúde, que condicione a actividade privada e pública.
Pelas mesmas razões, o Bloco de Esquerda opõe-se à ideia de que o factor preço deva ser a principal condicionante racionalizadora do sistema. Foi com essa lógica que foram introduzidas as "taxas moderadoras" que, como a designação indica, procuravam racionalizar a procura em função do preço dos serviços. Ora, a experiência demonstrou categoricamente que esse condicionamento foi irrelevante para os fins propostos, e que, pelo contrário, conduziu a um agravamento das injustiças sociais e da discriminação no acesso à prestação dos cuidados de saúde. Um mercado de medicamentos que é dos mais caros da Europa não deixou de conviver com uma cultura consumista e prescricionista, mesmo que os mais pobres frequentemente não usem os medicamentos que deviam. Fixar um preço não impediu o congestionamento das unidades hospitalares com urgências artificiais. Por outras palavras, perante a emergência e o sentido de temor pela saúde, o factor preço foi inútil para racionalizar a procura e tornou-se um mero expediente para financiar parcialmente a oferta pública. O presente projecto desenvolve uma estratégia alternativa, procurando racionalizar a prescrição de medicamentos, qualificar os centros de saúde e estimular a qualidade dos cuidados primários, desconcentrar os serviços, aumentar a participação cidadã como um critério de qualidade fundamental, e dessa forma combinar políticas de oferta e de procura para racionalizar o sistema de saúde em função das metas democraticamente definidas para o seu desenvolvimento.