1210 | II Série A - Número 023 | 27 de Dezembro de 2001
O Parlamento Europeu considera ainda que a defesa dos direitos humanos é o "cimento" da União Europeia e que devido a tal pressuposto os Estados-membros e as instituições da União são chamados a desempenhar um papel importante para que o Tribunal Penal Internacional seja uma realidade num futuro próximo.
Uma vez implementados estes estatutos e institucionalizado o Tribunal Criminal Internacional, julgamos que este órgão poderá ser, num futuro próximo, uma das garantias máximas da defesa da dignidade da humanidade e do respeito integral pelos direitos humanos.
VIII - Da revisão extraordinária da CRP e a sua causa próxima: a ratificação dos Estatutos do Tribunal Penal Internacional
O Estatuto ocupa-se, sucessiva e extensivamente, da criação do Tribunal, competência, admissibilidade e direito aplicável, princípios gerais de direito penal, composição e administração do Tribunal, tramitação processual, julgamento, penas, recurso e revisão, cooperação internacional e auxílio judiciário, execução da pena, assembleia dos Estados parte e financiamento.
Verificados determinados requisitos, nem todos controláveis pelo Estado português, o Tribunal poderá julgar crimes, previstos no estatuto, praticados em território português, nomeadamente por nacionais e, dentre estes, por titulares de órgãos de soberania da República portuguesa. Uma grande parte dos crimes que o Tribunal tem competência para julgar supõe mesmo que os respectivos autores ou suspeitos se encontrem investidos em funções estaduais ou semelhantes.
No relatório preparado pelo Dr. Alberto Costa, e assumido por esta mesma Comissão, foi referido pelo autor que a Constituição identifica Portugal como uma República soberana (artigo 1.º) e os tribunais como órgãos de soberania, a quem cabe administrar a justiça, relevando neste caso a justiça penal, em nome do povo (artigo 202.º, n.º 1).
O Tribunal criado pelo estatuto, ou a categoria a que se deva inserir, não se encontra directa ou indirectamente previsto ou admitido no texto constitucional (artigo 209.º e seguintes) e a esfera jurisdicional que lhe é atribuída virá reduzir, correlativamente, a dimensão de soberania constitucionalmente deferida aos tribunais, órgãos de soberania, no Capítulo V da Constituição. Com o Estatuto, a "competência soberana" (Canotilho) do Estado português que a jurisdição constitui resultará necessariamente diminuída, por transferência para o Tribunal de uma sua parcela.
Pela importância que as conclusões desse relatório assumem para a matéria em causa neste relatório, e porque o mesmo foi decisivo para a Revisão Extraordinária, permitimo-nos transcrever as mesmas:
"Conclusões:
1 - As normas do Estatuto de Roma que atribuem ao Tribunal Penal Internacional competência para julgar crimes cometidos em território nacional (artigos 5.º e 12.º), diminuindo correlativamente a competência soberana constitucionalmente atribuída aos tribunais portugueses, são incompatíveis com o artigo 1.º (princípio da soberania) e artigos 202.°. n.º 1, e 209.º da Constituição (função jurisdicional e categorias de tribunais).
2 - A norma do Estatuto que prevê que o Tribunal aplique a pena de prisão perpétua (artigo 77.º, n.º 1, alínea b)) não é compatível com o artigo 30.º n.º 1.º, da Constituição.
3 - As normas do Estatuto que prevêem a entrega de pessoas ao Tribunal, nomeadamente de nacionais (artigo 89.º e seguintes), independentemente da verificação dos requisitos constitucionalmente exigidos, não é compatível com o disposto no artigo 33.º, n.os 1, 3 e 5 da Constituição.
4 - A norma do Estatuto que consagra deforma irrestrita a "irrelevância da qualidade oficial" (artigo 27.º) é incompatível com as normas que hoje definem os regimes especiais de efectivação de responsabilidades criminais previstos na Constituição em relação ao Presidente da República, Deputados e membros do Governo, nomeadamente nos artigos 130.º, 157.º e 196.º da CRP.
5 - Uma Constituição amiga do direito internacional e dos direitos do homem, como é a nossa, mantém-se fiel à sua identidade substancial se, por via de revisão, se abrir à possibilidade de reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional e ratificar o Tratado de Roma, não implicando tal revisão violação dos limites de revisão material.
6 - A via que se preconiza para a ultrapassagem da incompatibilidade entre o Estatuto de Roma e algumas soluções constitucionais vigentes é a abertura de um processo de revisão extraordinária, nos termos do artigo 284.º, n.º 2, da CRP, de que possa resultar uma indispensável cláusula habilitante ou alteração da disciplina constitucional de efeito equivalente.
Sublinhe-se que, em Abril de 2001, a Assembleia da República assumiu poderes de Revisão Extraordinária da Constituição através da aprovação da Resolução de Assembleia da República n° 27/2001, de 4 de Abril.
Posteriormente deram entrada três projectos de revisão constitucional, da autoria do Partido Social Democrata (projecto de revisão constitucional n.º 1/VIII); do Partido Socialista (projecto de revisão constitucional n.º 2/VIII) e do CDS-PP (projecto de revisão constitucional n° 3/VIII), os quais foram objecto de apreciação e discussão profunda em sede de CERC.
A discussão e votação em Plenário destas iniciativas ocorreu no dia 4 de Outubro de 2001, tendo já sido adoptado o Decreto Constitucional n.º 1/VIII (Quinta Revisão Constitucional).
Sofreram alterações os artigos 7.º, 11.º, 15.º, n.º 3, 33.º, n.º 5, 34, n.º 3, e 270.º do Texto Constitucional.
Tendo em conta o objecto do relatório sub judice, os preceitos que mais relevam são, designadamente:
- O novo n.º 7 do artigo 7.º, onde se prevê que Portugal pode, tendo em vista a realização de uma justiça internacional que promova o respeito pelos direitos da pessoa humana e dos povos, aceitar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, nas condições de complementaridade e demais termos estabelecidos no Estatuto de Roma;
- O n.º 6 do artigo 33.º (anterior n.º 4), onde se continua a salvaguardar que não é admitida a extradição, nem a entrega a qualquer título, por motivos políticos ou por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulta lesão irreversível da integridade física (foi-lhe aditada a expressão "nem a entrega a qualquer título", entre "extradição" e "por motivos" e substituída a expressão "nem" pela expressão "ou" entre "políticos" e "por crimes".
Este preceito constitucional passa a conter um novo n.º 5, onde se estabelece que "o disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação das normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia".
A nosso ver as alterações legais que se pretendem introduzir não colidem ab initio com o novo figurino constitucional, nem com a ratificação da proposta de resolução n.º 41/VIII, dadas as profundas implicações que advêm da eventual aprovação destas iniciativas no nosso ordenamento jurídico-penal.