0566 | II Série A - Número 018 | 04 de Julho de 2002
Os apontados condicionalismos têm legitimado a procura de soluções alternativas para alcançar um desiderato que os mecanismos biológicos da reprodução humana não podem, em certas circunstâncias, proporcionar.
Torna-se, pois, necessário intervir, em termos legislativos, na construção de um sistema que, a par da necessária investigação das causas ou factores de infertilidade com vista à sua prevenção, e de acordo com as orientações da Organização Mundial de Saúde, estabeleça medidas concretas de actuação estratégica nas vertentes da Medicina Familiar, Fertilidade e Reprodução Humana.
O entrosamento coerente de uma tal rede no modelo operativo dos cuidados de saúde materno-infantis acaba por tornar logicamente imprescindível a promulgação de um regime jurídico que defina e acautele as regras de actuação na vertente especifica da procriação medicamente assistida que constituirá, nesta perspectiva, apenas o patamar superior de uma escalada intervencionista na área da reprodução humana.
A inexistência, em Portugal, de legislação especifica neste domínio, tem sido objecto de posições diversificadas. Já se tem afirmado que não serão necessárias leis para tratar doentes e, pelo contrário, também se tem invocado a necessidade imperiosa de regras e limites já que; sem lei, tudo é permitido porque nada está fora da lei.
Uma posição intermédia poderia preconizar um enquadramento normativo apenas limitado aos aspectos consensuais de um problema que continua, cada vez mais, a ser objecto de acesas polémicas.
Porém, a inércia legislativa, independentemente do quadrante jurídico em que tenha lugar, representa só por si uma escolha de valores. Sem lei, os limites, excepção feita à ética, à moral e à consciência individual, são apenas os do tecnicamente possível.
Ora, não é de excluir que sectores socialmente significativos possam ser, relativa ou absolutamente, insensíveis a imperativos de consciência, porque seduzidos por uma mirífica omnipotência dos progressos técnicos e das suas eventuais benesses. Se em cada sociedade há grupos que não concebem a técnica sem ética, outros haverá para quem o carácter eminentemente instrumental da técnica acaba por ser absolutizado e erigido a categoria que só à ética deve caber: ser um fim em si mesma.
A inexistência de legislação sobre procriação medicamente assistida motiva ainda compreensíveis dificuldades na determinação de direitos e responsabilidades dos diversos intervenientes nos actos próprios de cada procedimento.
O Decreto-Lei n.º 319/86, de 25 de Setembro, pretendeu estabelecer as condições para autorização de actos exigidos pelas técnicas de procriação medicamente assistida, as quais deveriam, no entanto, ser definidas em decreto regulamentar. Porém, tal regulamentação nunca chegou a ser produzida.
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida divulgou, em Fevereiro de 1993, extenso relatório-parecer sobre Reprodução Medicamente Assistida (3/CNE/93) que veio definir os princípios éticos que devem estar implícitos nas práticas de procriação medicamente assistida.
Também a Lei n.º 12/93, de 22 de Abril, relativa a colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana estabelece no n.º 2 do artigo 1.º que "a dádiva de óvulos e de esperma e a transferência e manipulação de embriões são objecto de legislação especial".
Posteriormente, em 1995, o relatório-parecer n.º 15/CNEV/95, do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, veio alertar para a urgência de ser produzida legislação relativa ao embrião humano, designadamente de forma a impedir a produção de embriões para fins de investigação científica.
Este Conselho publicou ainda o parecer 18/CNECV/97, sobre protecção jurídica das invenções biotecnológicas; 21/CNECV/97, sobre clonagem; 22/CNECV/97, sobre dispositivos médicos para diagnóstico in vitro; 25/CNECV/98, sobre utilização terapêutica de produtos biológicos; 31/CNECV/2000, sobre o Genoma Humano.
Considerou-se que urgia, pois, implementar medidas que acautelassem princípios a que estão subjacentes questões que têm a ver com a defesa da liberdade do Homem e da dignidade da pessoa humana, com a solidariedade social e com a intervenção, sanitária e respectiva exigência de qualidade dos serviços prestados É que, em última análise, o rápido desenvolvimento tecnológico e o avassalador progresso científico terão de ser postos ao serviço da pessoa humana exclusivamente para o seu bem.
Nesse sentido, foi entendido pelo Governo em 1997, apresentar uma proposta de lei que colmatasse esta importante lacuna no ordenamento jurídico português.
Considerava-se, então, que a regulamentação possível deveria resultar de uma adesão de opiniões que caucionem as, escolhas, as quais, contudo, não deixariam certamente de ser objecto de contestação por parte de alguns. O desiderato essencial teria de ser conseguido em consonância com princípios, normas e recomendações oriundas de credenciadas instituições nacionais e supra-nacionais, e na defesa intransigente de princípios fundamentais, entre os quais teriam de ser destacados o respeito pela dignidade da pessoa humana, a sua inviolabilidade e inalienabilidade. Em tal contexto, não poderia ainda ignorar-se a imprescindível segurança que tem de merecer o material genético humano e a necessária garantia de qualidade técnica e humanização dos serviços prestados.
Esta posição mantém-se tanto mais que o Decreto n.º 415/VII (resultante da proposta de lei n.º 135/VII) acabou por ser objecto de veto político pelo Sr. Presidente da República.
Foi, entretanto, ratificada pelo Parlamento Português a Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina do Conselho da Europa que passou a integrar o nosso ordenamento jurídico e que fixa alguns princípios gerais que enquadram a actuação nestes domínios.
Até por esse facto, fica evidenciada a importância de definir com rigor quais as técnicas juridicamente admissíveis, as condições em que é permitido o recurso a tais técnicas e quais as instituições profissionais habilitadas para o efeito.
Em suma, terá de ser estabelecido um quadro normativo que, com eficácia, prudência e razoabilidade, cumpra uma missão onde as facilidades não pontifiquem. Assim sendo, não se podem assumir posições fundamentalistas, mas antes há-de procurar-se, sempre e só, o que, de acordo com os dados da ciência, dignifique a pessoa humana, repudiando aquilo que poderá aviltar e procurando retirar de uma tal atitude de espírito as consequências que se considerarem justas, humanas e até mesmo consentâneas com o sentir e os valores da comunidade nacional.
Em conformidade, assume-se, na proposta legislativa ora presente, a defesa dos princípios a seguir enunciados:
a) As diferentes técnicas de procriação medicamente assistida que implicam manipulação gamética