O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

II SÉRIE-A — NÚMERO 98

28

quadro em que se tomam importantes e complexas decisões individuais, não deve o Estado impor uma única

conceção de vida, um único trajeto de escolhas individuais, ou sequer um único modelo de pessoa, que possa

enquadrar essa tomada de decisões.

É por isso que a ordem jurídica tem evoluído de forma determinante no sentido de reconhecer, como

decorrência da autonomia implícita no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito ao desenvolvimento

da personalidade, que cada pessoa é, desde de que não prejudique terceiros, a arquiteta livre do seu destino,

mesmo nos momentos mais difíceis da sua vida.

Mesmo em questões de particular sensibilidade, associadas, como esta, ao final da vida e a decisões

fundamentais em matéria de saúde, a ordem jurídica tem vindo a evoluir no sentido da clara consagração legal

do princípio do consentimento informado, da proibição do encarniçamento terapêutico e na definição de um

quadro jurídico equilibrado de regulação das diretivas antecipadas de vontade (testamento vital).

Se o Estado de Direito não deve poder impor uma conceção ética, moral, ideológica ou filosófica (maioritária

ou não) às decisões pessoais que fazemos ao longo da vida, é legítimo questionarmo-nos se a autonomia das

pessoas deve abranger algum tipo de decisão sobre uma dimensão essencial da vida – a morte. No

entendimento do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, a resposta não pode deixar de ser positiva,

materializando o respeito pela pessoa em final de vida com um projeto de lei que vem regular as condições

especiais para a prática da eutanásia não punível.

As condições para a prática da eutanásia não punível devem resultar, pois, de uma leitura atenta e

fundamentada dos parâmetros constitucionais convocados para esta matéria, que permitam balizar de forma

segura a construção de um consenso o mais alargado possível em sede parlamentar e junto da sociedade

portuguesa, cuja sensibilidade para o tema tem claramente evoluído neste sentido.

Sendo este um tema particularmente complexo e exigente no plano jurídico-constitucional, confrontando

autores que sustentam a inconstitucionalidade da opção despenalizadora da eutanásia, por um lado, e outros

que, em sentido diametralmente oposto, defendem que não a permitir, em caso algum, traduziria isso sim uma

inconstitucionalidade, é, todavia, possível identificar hoje, com clareza, uma área de confluência maioritária

concludente de que a despenalização da eutanásia, desde que em circunstâncias especialmente circunscritas,

não é inconstitucional, tendo o legislador margem de liberdade para regular as condições especiais para a prática

da eutanásia não punível.

Por outras palavras, e citando, no caso, as de alguns eminentes mestres do nosso Direito, «não é líquido –

muito longe disso – que estas questões possam ser respondidas a partir do artigo 24.º (Direito à vida), em

particular, e da Constituição, em geral, sem reconhecer ao legislador democraticamente legitimado uma margem

de intervenção mediadora entre as posições extremas que neste domínio se digladiam» (Jorge Miranda/Rui

Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., pp. 538 e 539, Coimbra 2010). No mesmo sentido, isto

é, apontando para a ponderação do sistema de bens e valores constitucionalmente defendidos por parte do

legislador, (Marcelo Rebelo de Sousa/José de Melo Alexandrino, Constituição da República Portuguesa

comentada, p. 108, Lisboa, 2000).

Entendemos, como é consensual, que não existe um direito jurídico-constitucional à eutanásia ativa,

“concebido como um direito de exigir de um terceiro a provocação da morte para atenuar sofrimentos”, nas

palavras, por exemplo, dos Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa

anotada, V.I, p.450, Coimbra 2007). Também não faz sentido, do ponto de vista jurídico-constitucional, a

construção de um direito a morrer.

Não se trata, pois, da afirmação de qualquer direito constitucional à eutanásia, mas do reconhecimento legal,

dentro da margem de conformação do legislador, a este respeito desenvolvida pelo Professor Costa Andrade

em audição na Assembleia da República, da possibilidade de disposição da própria morte em circunstâncias

especiais, ponderando equilibradamente toda a intensa rede de interesses complexos em presença.

A não punição da eutanásia em circunstâncias especiais deve, assim, resultar de uma ponderação de direitos

e valores constitucionais (vida humana, dignidade da pessoa humana, autonomia individual), que nos impele a

uma evolução do quadro legal em vigor e da consideração de que seria desproporcional manter inalterada a

punição prevista nos artigos 134.º e 135.º do Código Penal referentes aos crimes, respetivamente, de homicídio

a pedido da vítima e de incitamento ou ajuda ao suicídio, em todas e quaisquer circunstâncias.

Todos os direitos fundamentais – e, portanto, também o direito à vida – gozam de um dever de proteção por

parte do Estado. Este dever de proteção significa que o Estado tem de salvaguardar os direitos fundamentais