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II SÉRIE-A — NÚMERO 26

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A Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, representa um caminho muito importante na evolução do direito animal

em Portugal e um importante passo ao nível sancionatório, que teve como propósito resolver o que havia sido

deixado de fora da proteção penal existente, respondendo a necessidades prementes de prevenção geral, pois

apesar do caminho desbravado pela Lei de Proteção dos Animais, de 1995, com a proibição de condutas que

colocassem em causa o bem estar animal, a respetiva punição não se encontrava até então prevista.

Desta forma, aditou-se ao Código Penal um novo Título VI, designado «Dos crimes contra animais de

companhia». Este avanço no plano do direito penal, acompanhado da evolução ao nível do direito civil, revestiu

grande importância, mas não podemos deixar de considerar que ainda há um grande caminho a desenvolver no

plano legislativo e, consequentemente, no plano jurisprudencial. Um desses caminhos é, tal como se pretende

com a presente iniciativa, alargar a tutela criminal a todos os animais vertebrados.

Ora vejamos:

Quer o crime de maus-tratos previsto no artigo 387.º do Código Penal, quer o crime de abandono previsto no

artigo 388.º do mesmo diploma abrange apenas animais de companhia.

O legislador pretendeu densificar o conceito de «animais de companhia» com o disposto no artigo 389.º do

Código Penal, todavia grande parte das dúvidas legitimamente suscitadas não se mostram ainda dissipadas por

este normativo.

«A perspetiva adotada pelo legislador na qualificação como animais de companhia parte de uma visão

antropocêntrica, pelo que o que interessa para a qualificação do animal como sendo de companhia é a forma

como a pessoa que o detém o encara. Efetivamente, um bicho-da-seda, ou um aracnídeo, poderão ser

considerados animais de companhia desde que seja esse o papel que desempenham na vida dos seus donos»1.

Acontece, porém, que a senciência não se cinge aos animais regularmente considerados como animais de

companhia. E esse parece ser o amplo entendimento de uma sociedade mobilizada para a prevenção e combate

aos crimes cometidos contra animais.

Desde as alterações promovidas pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, que se tem assistido a um debate

em torno da interpretação e subsequente aplicação dos novos tipos de crime inscritos no nosso ordenamento

jurídico em virtude da entrada em vigor do referido diploma.

Refere a Ordem dos Advogados, em parecer elaborado e emitido aquando da discussão da temática dos

crimes contra animais de companhia, que são «sobejamente conhecidas as dificuldades, insuficiências e

deficiências mais alarmantes que os mesmos suscitam e que têm conduzido a resultados injustos, desde logo,

no arquivamento de grande parte dos inquéritos abertos na sequência da apresentação de denuncias por atos

de matar cometidos com dolo, por violência exercida contra animais, que não de companhia, ou situações de

abandono em que estão omissos indícios de perigo concreto para a integridade animal».

Menciona ainda, no mesmo parecer, a necessidade da extensão da tutela penal a outros seres sencientes

ao defender que «desde já louvamos a intenção de estender a tutela penal a outros animais, que não apenas

os de companhia, orientação que vai de encontro ao sentimento de justiça geral de proteger da violência

desnecessária e evitável os outros seres sencientes que connosco partilham o planeta (neste caso, o território

nacional)».

No parecer do Conselho Superior de Magistratura proferido no dia 2 de fevereiro de 2014, aquando da

apreciação dos projetos que despoletaram a criminalização dos maus-tratos e abandono de animais de

companhia, vislumbra-se opinião semelhante ao referir que «não vemos como os atos de crueldade injustificada

praticados sobre um qualquer animal que não caiba na assim tão apertada previsão da norma, fiquem fora da

sua esfera de proteção (…) por exemplo, não se compreende a razão de se considerar legítima a exclusão do

âmbito da proteção da norma, os casos de violência ou maus-tratos injustificados infligidos a um burro, a uma

vaca, a um cavalo ou a um veado, etc.».

Tal abrangência não só se reveste da mais fundamental justiça, como acompanharia os avanços científicos

concernentes às várias espécies animais, reconhecendo as respetivas necessidades etológicas e capacidades

físicas, sensoriais e cognitivas, como resolveria os problemas associados à aplicabilidade das normas previstas

no nosso Código Penal, e ainda acompanharia o caminho já traçado por outros Estados-Membros da União

Europeia.

1Crimes contra animais de companhia. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual, Artur Seguro Pereira, E-book, CEJ, abril de 2019.)