374 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 38
pelo Governo para o novo código, a menos que a Assembleia Nacional entenda dever estabelecer previamente doutrina que imponha desde já soluções a adoptar.
Feita esta necessária reserva, a atenção que nos merecem os Srs. Deputados proponentes e o dever constitucional de esclarecer as questões sujeitas a debate parlamentar levam-nos a desenrolar, até onde nos for possível, o fio de um assunto que nos parece enriçado por sérias dificuldades.
A Justiça Militar
3. O foro militar tem antiquíssima tradição. Pode dizer-se que é coetâneo do primeiro exército organizado, pois não pode haver organização sem disciplina, disciplina sem autoridade, autoridade sem regra, regra sem um órgão que a interprete e faça observar.
Esse exército -qualquer que fosse a modalidade assumida através dos tempos: voluntário ou coagido, mercenário ou patriota, partidário ou nacional, recrutado na tribo, na casta, no feudo, na classe ou na nação - representou sempre uma força, mais ou menos ordenada e armada, capaz de se impor em combate e, como tal, dotada de privilégios dentro dos povos a que assistia ou em que agia.
Eram esses privilégios constituídos tanto por especiais direitos como por especiais deveres, primeiramente estabelecidos pelos rudimentares pactos firmados entre os chefes e seus homens de armas e depois estratificados em preceitos consuetudinários, cuja veemente força de aplicação se transmitiu de época em época, até que foram reduzidos a normas escritas, lentamente modificadas, ao passo que se iam subindo os degraus da civilização.
Esta é a noção que se pode colher quando se lêem as descrições dos viajantes e etnólogos sobre a vida dos povos primitivos, ou se estudam os clássicos gregos e latinos, ou percorrem os textos da legislação bárbara e das crónicas medievais -e é de assinalar á convenção firmada entre D. Afonso Henriques e os cruzados que o ajudaram na conquista de Lisboa-, pois que, em todos os tempos, o chefe teve necessidade de distribuir aos componentes das suas tropas uma justiça enérgica e expedita, que mantivesse a ordem nas relações deles entre si e também com as populações em que viviam ou mesmo, contra as quais actuavam; mas, simultaneamente, tinham de adequar tanto as normas como as sanções à mentalidade do homem de guerra, de modo a conciliar a rigorosa repressão dos desmandos com a suprema necessidade de manter a coesão da força armada e não quebrantar e antes estimular o espírito guerreiro, que se sublima ate ao sacrifício voluntário da própria vida.
4. O ilustre general L. A. de Carvalho Viegas publicou na Revista Militar 1 um largo estudo sobre as origens e modalidades do nosso foro militar, para chegar a conclusão idêntica à do projecto de lei em apreciação.
O que atrás escrevemos poderia servir apenas de prefácio ao interessante trabalho, se não fosse nosso dever fazer a revisão de suas informações e deduções e completá-las quanto nos fosse possível, sem ter em mente determinada conclusão, visto que a nossa tarefa é oferecer todos os elementos aproveitáveis, com o sentido de contribuir para o esclarecimento de tão discutido assunto.
Parece-nos que, antes do desastre de Alcácer-Quibir, em que foi ceifada a flor da nobreza de Portugal, se sentiu a necessidade de organizar um exército de base popular, para tanto se publicando o Regimento de 10 de Dezembro de 1571, que organizou em todo o País as Ordenanças, com seus capitães-mores, sargentos-mores e oficiais eleitos pelos municípios, excepto onde houvesse senhores das terras ou alcaides-mores, porque ai eram estes de direito os capitães-mores, e regulamentou as esquadras, bandeiras e alardos em que os homens de guerra se agrupavam, com aperfeiçoamentos depois introduzidos pela provisão de 15 de Maio de 1574.
A disciplina era mantida pelos comandos e a justiça era distribuída conforme as ordenações do reino e os forais dos concelhos. Não se pode dizer que houvesse foro privativo, tal como hoje o concebemos, mas a justiça não estava ausente das formações militares.
O Governo de então, enleado pelos acontecimentos que conduziram em 1580 à posse da Coroa por D. Filipe I, não teria tempo de armar e adestrar esta força, que de permanente só tinha os quadros, aliás não remunerados. Cremos que foi, no entanto, esta orgânica extensão da teia militar, juntamente à irritante Carta Régia de Filipe III de 31 de Dezembro de 1639, com rigorosas instruções para a recruta de uma grande leva de gente para ir servir em Espanha, que proporcionou ao nosso D. João IV o rápido levantamento de um exército nacional, a que longa guerra ia impor o carácter de permanente e tornar necessária a outorga de justiça própria.
Instauração e evolução do foro militar no regime absoluto
5. É provável quê durante os Governos filipinos se difundisse entre nós, através dos fidalgos, letrados e mercadores que frequentavam a Corte de Madrid, o conhecimento das Ordenamos de D. João de Áustria e do duque de Alba para os exércitos do seu comando e, sobretudo, as Ordenamos de 1587 para o exército espanhol da Flandres, atribuídas ao príncipe de Parma, e portanto podemos admitir, como o Sr. General Carvalho Viegas, que delas veio a sugestão para os primeiros diplomas judiciais militares publicados por D. João IV, após a Restauração.
Com efeito, em 11 de Dezembro de 1640 foi instituído um conselho de guerra junto da Corte, composto de dez membros, um promotor de justiça e um secretário, tendo um Ministro ou juiz letrado como assessor; mas foi o alvará de 22 de Dezembro de 1643 que definiu as regras de competência e processo desse tribunal, prevendo até que nos casos mais graves a ele assistissem mais dois letrados e prescrevendo a sua reunião em dois dias de cada semana.
Em França só em 1655 foram decretadas por Luís XIV as Ordenanças aperfeiçoadas1, de que todavia não encontramos a influência na nossa posterior legislação do século XVII, pelo que a criação e organização bastante perfeita do nosso primeiro tribunal militar se pode dizer filha do espírito nacional.
A par subsistia larga competência disciplinar dos governadores das armas e dos comandantes dos exércitos em operações, sem prejuízo dos privilégios dos nobres e dos cavaleiros das três ordens militares, que haviam de prolongar-se até ao século XIX.
6. Com a estagnação da guerra e a paz não foi dissolvido o exército.
E como os crimes de furto praticados pelos incorporados irritavam as populações, enodoando as fardas, foi estabelecido em 25 de Janeiro de 1660, e depois esclarecido e renovado em 31 de Julho de 1664, que os réus de crimes de furto, mesmo de pequeno valor, eram excluídos do foro militar e relegados às justiças ordinárias.
1 Pp. 553-575 e 719-740 de 1953 e pp. 95-98 de 1954.
1 Cit. Revista Militar, p. 556.