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17 DE ABRIL DE 1961 1329

Discute-se um instituto que, embora tenha dentro do direito privado um assento próprio, como contrato em particular, não pode deixar de ficar dominado, na sua regulamentação específica, pelos princípios- jurídicos que vierem a inspirar o futuro Código Civil, designadamente em matéria de direito de propriedade e de liberdade negocial.
Nos problemas postos não predominam simplesmente aspectos agrários. É um erro supô-lo, e um erro que pode ter consequências graves. Se se encarar apenas o aspecto agrário dos problemas, descurando a satisfação de outros interesses de ordem social que o direito privado procura acautelar, pode isso conduzir - é-se levado a dizer que conduz necessariamente - a soluções indesejáveis.

O direito, disse o Prof. Galvão Teles, teve de intervir e limitar a liberdade jurídica para restituir aos fracos a sua perdida liberdade de facto, defendendo-os na luta desigual, impondo maior justiça nas relações entre as partes, transformando numa palavra o contrato, de instrumento de predomínio, em equilibrada conciliação de interesses, ao serviço individual dos contraentes e ao serviço geral da colectividade.
A ideia de Bem-comum penetra o contrato; o espírito institucional perpassa-o; modela-o, hoje, uma ânsia maior e mais pura de justiça.
O trilho assim aberto tem também os- seus perigos. É um pendor por onde se pode resvalar facilmente e já se tem resvalado, caindo na asfixia completa ou quase completa da liberdade contratual e no consequente definhamento do contrato, como corpo mirrado a que falta o sopro vital do fecundante estímulo da iniciativa e interesses privados. Se ao contrato se tira a substância volitiva que o tonifica e rejuvenesce, ele morre, esmagado pelo peso do intervencionalismo das leis, da administração pública, dos, tribunais, e nós cidadãos perdemos um dos mais seguros baluartes e defesas da nossa individualidade, e connosco, perde a economia nacional e internacional o motor mais potente da sua propulsão.
Por isso na feitura do meu projecto procurei estabelecer um ajustado doseamento das disposições imperativas, que excluem a liberdade contratual, e das supletivas, que a facultam.
Foi meu lema o seguinte: cumpre salvaguardar, quanto possível, a liberdade contratual, que só deve ser limitada até onde o impuserem as exigências supremas do bem comum e da justiça 1.

É este o parecer ponderado e eloquente do. relator deste capítulo do projecto do futuro. Código Civil; mas não é essa, como se verá, a orientação do projecto em discussão, nem sempre isenta do risco de transformar a boa harmonia entre senhorios e arrendatários, quase membros da mesma família, da velha família patriarcal, como é comum nas regiões do Norte, numa luta inglória pela defesa de interesses materiais, ou os caseiros em novos servos da gleba, perpetuamente ligados u terra que uma vez cultivaram como rendeiros.
O individualismo puro, a plena liberdade contratual, outrora considerados factores indiscutíveis da justiça social, deram de si fracas provas, e pode agora um socialismo exagerado, produto de uma análise unilateral e puramente agrária dos problemas, conduzir ainda a piores resultados, sem se conseguirem sequer os fins pretendidos, hoje latentes em todas as reformas e a que se fez já referência: uma maior justiça distributiva dos rendimentos da empresa para elevar o nível de vida dos que trabalham a terra e um mais fácil acesso à propriedade.
Não ignora a Câmara Corporativa que em certos sectores se revela alguma tendência para a autonomia, dentro do direito privado, de tudo o que respeita à vida agrícola, o que poderia justificar, mesmo num momento em que se prepara um novo Código Civil, a publicação de um diploma legislativo- sobre arrendamento. Permitir-se-ia, porventura, um estudo mais apropriado dos problemas e talvez um passo mais largo contra o individualismo jurídico do século XVIII.
Já se escreveu em Espanha:

La tarea (autonomia do direito agrário) se impone como una necesidad, pues ahora las varias leyes referentes a Ia tierra y a la agricultura son frecuentemente reformadas, provienen de distintos critérios, de diferentes épocas, a menudo se con-tradicen o crean problemas de interpretación casi insolubles o se interfieren en sus fines. La legislación agraria aparece así confusa, en ocasiones caótica, falta de consistência, carente de doctrina unitária y por ello resiste a los mejores intentos de perfeecionamentó 1.

A questão é da maior complexidade.
Não são hoje apenas as matérias relacionadas com a estrutura económico-agrária que pretendem a sua independência. Numa época que se aponta como de crise do direito privado, muitas outras matérias tradicionalmente integradas na codificação global do direito civil aspiram a uma codificação autónoma, tais como o casamento, o contrato de trabalho, o arrendamento urbano, o contrato de seguro e, de uma maneira geral, a propriedade.
Importa, porém, ser cauteloso. Pode justificar-se em períodos de grandes remodelações legislativas, em momentos de grandes mutações ideológicas, o domínio da lei extravagante, para melhor se abrir o caminho à experiência. Mas. quando se não discutam já os princípios-base, quando se assentou numa certa estrutura social e económica, as leis deslocadas dos grandes corpos legislativos são, em princípio, inconvenientes, por conterem, ou poderem conter, orientações contraditórias com as daqueles.
Repete-se, pois: É um erro supor que pela circunstância de ter o arrendamento de prédios rústicos reflexos na vida agrícola, na produtividade das terras e no nível de vida dos que nela trabalham, deve a sua regulamentação ser obra exclusiva de técnicos rurais e de economistas e obra separada das grandes compilações do direito privado. Como é óbvio, não pode deixar de ser predominantemente obra de juristas. Só assim sé não cairá em perigosas concepções unilaterais, longe quantas vezes dos mais elementares princípios em que assenta a nossa organização social e que são sustentáculo da nossa própria civilização.
É preciso não esquecer que a ciência do direito não é simplesmente uma ciência de conceitos e de abstracções - a doutrina jurídica - nem simplesmente uma arte de interpretar as leis. O direito é também um ramo da sociologia que estuda, qualifica e aprecia os fenómenos jurídicos e suas repercussões sociais em qualquer domínio, seja ele o económico, o político ou o moral.

1 «Revisão do Código Civil Português», conferência pronunciada na Universidade de Múrcia, 1955, parte final.
1 F. Cerrilho Quilez, «La codificación del derecho agrário español», na Revista de Derecho Privado, 36, p. 914.