12 DE DEZEMBRO DE 1962 235
A separação que o projecto faz entre os serviços dependentes do Ministério cia Saúde e Assistência e os serviços dependentes do Ministério da Justiça tem assim plena justificação, bem como a restrição aos primeiros do campo do aplicação do projecto (base IV, n.º 3). Mas este principio, por um lado, deverá ser levado aos seus justos limites (reconhecendo-se que no campo da saúde mental nem toda a acção do Estado é exercida pelo Ministério da Saúde e Assistência, havendo uma parte que, por lazões especiais, é atribuída a outros cívicos- este ponto envolvera a revisão que faremos aquando da apiedarão na especialidade, da base III, n.º 1); por outro lado, não deve ser levado longe de mais- devem multiplicai-se os meios de coordenarão entre as actividades dos dois Ministérios, e nesse sentido propomos uma alteração a base V, n.º 2, do projecto em análise.
23. A administração dos bens dos doentes mentais é problema que tem merecido ultimamente, na doutrina estrangeira, um trabalho de revisão.
Às novas orientações que se têm desenhado procura corresponder no projecto governamental a base XXIV. E como apenas de uma base se trata pareceria que a questão seria de encarar e estudar mais adiante, no exame do projecto na especialidade. No entanto, a sua importância justifica que seja estudada agora em profundidade, como um dos mais importantes pontos da reforma proposta pelo Governo.
Antes de se introduzir qualquer alteração no sistema vigente, comem ver quais os meios que este oferece para assegurar a gestão dos interesses de uma pessoa que esteja por razão de anomalia psíquica incapaz de a ela proceder pessoalmente.
O meio central previsto na lei é a interdição por demência, regulada nos artigos 314.º e seguintes do Código Civil e nos artigos 944.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Independentemente desta, o Código Civil permite que, sendo o demente casado, a mulher assuma, a administração do património do casal enquanto durar o seu impedimento (artigos 1117.º, § único e 1189.º). Para certos actos, permite-se a nomeação do um curador especial - assim, para se defender em acção contra ele proposta em juízo (artigos 14.º e 236.º do Código de Processo Civil). E, é claro, enquanto o demente não for interditado, poderá sempre conferir a outrem mandato para gerir os seus negócios.
O sistema da lei é portanto o de só substituir outra pessoa ao interessado na gestão dos seus negócios, sem consentimento deste, mediante intervenção judicial. Só se exceptua o caso da mulher, a excepção compreende-se dadas as relações que a ligam àquele que é destituído da administração dos seus interesses.
Simplesmente, a interdirão tem sido vivamente criticada, considerando-se meio moroso, impopular e caro.
Moroso, antes de mais: moroso quer na sua aplicação, quer no seu Santamente (*), cercada como é das cautelas necessárias em medula de tal melindre. Essencialmente é esta a característica que salienta o relatório (n.º 9), como fundamento para propor uma alteração do regime vigente, através da base XXIV do projecto.
Note-se que a lei se preocupa em evitar os pericula in mora, os prejuízos que advém da morosidade do processo. Logo após o requerimento da interdição e constituição de defesa do arguido, «o representante do arguido no processo pode ... promover a nomeação judicial de um tutor provisório» (artigo 946.º n.º 3, do Código de Processo Civil). Em momento mais adiantado do processo de interdição, o juiz pode decretar, a titulo provisório, a própria interdição «se reconhecer que há necessidade de providenciar imediatamente quanto à regência da pessoa e administração dos bens do arguido» (artigo 953.º n.º 1, do Código de Processo Civil).
Em todo o caso, a critica permanece o processo de interdição demora, é lento e moroso. Além disso, diz-se que a interdirão é tombem um meio impopular - receiam as famílias a sua publicidade e o estigma que uma sentença judicial de interdirão acarreta. Por último afirma-se a interdição é uma medida cara, o que a possibilidade de assistência judiciária pouco atenua.
E fora de dúvida que todos os inconvenientes apontados se fazem sentir, embora todos tenham causa justificativa. A morosidade resulta de, neste domínio a celeridade se procurar, e bem, contrapor a ponderação, a impopularidade resulta do facto de o interesse de terceiros exigir que se exponha a público uma situação que a família preferiria ocultar; por último, a onerosidade do processo - aliás neutralizavel através do instituto da assistência - resulta da necessidade de prover o órgão jurisdicional com os meios necessários
a uma decisão conscienciosa e ponderada sem isso vir injustamente a pesar sobre a colectividade.
A única alternativa a este regime (no sistema da nomeação de um tutor ou curador, nomearão que só se pode defender seja feita pelo tribunal) que a Câmara reputa digna de atenção é a da constituição da tutela ou curatela ipso jure -isto é sem intervenção do tribunal ou de qualquer entidade - daqueles que se colocarem em situação de dela necessitarem por virtude de certo facto - sujeição a tratamento psiquiátrico, internamento.
A ordem jurídica francesa oferece-nos um sistema deste tipo. O Código Civil apenas previa, como o nosso, a interdição judicial. Mas uma lei do 30 de Junho de 1838 (artigo 31.º) veio estabelecer que, quanto aos estabelecimentos públicos, o internamento dava ipso facto origem a uma situação de representação legal do internado, cuja esfera patrimonial seria gerida por um administrador provisório, escolhido entre os membros da comissão administrativa do estabelecimento. O sistema não se aplica aos doentes internados nos estabelecimentos particulares, nem quanto aos não internados. Quanto nos primeiros (além sempre claro, da interdição) pode-se requerer a nomeação judicial de um curador (administrateur judiciaire) quanto aos segundos, em rigor apenas a interdição é possível, embora a jurisprudência admita por vezes também a possibilidade de nomeação judicial de um curador provisório (1).
Simplesmente, não parece à Câmara de aplaudir o sistema segundo o qual se permita, sem precedência
(1) Artigo 958.º do Código de Processo Civil «Sabe-se como é complicado, demorado e custoso o processo de interdição. Sabe-se que não o é menos o processo de levantamento . são designadamente reuniões do conselho de família, intervenções de peritos, interrogatórios pelo tribunal , notificações e publicações. Não se pode pensar em submeter o doente curado, após a sua alta, a um tal regime» («Projet de texte présenté par le Ministère de la Justice Concernant l'Àdministration des Biens des Malades Mentaux», in L Information Psychiatrique, 1961, p 24).
(1) Lauzier «La Protection des Biens de Certaines Catégories d'Hospitalises», in L'information Psychiatrique, 1959, pp. 171 e segs.