240 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 31
32. Vejamos antes de mais qual o papel reservado aos primeiros órgãos judiciais.
Meio fundamental de defesa da liberdade individual em matéria de assistência psiquiátrica será sempre a intervenção de órgãos judiciais (juizes ou magistrados do Ministério Público).
Esta intervenção - destinada sempre, claro, a combater possíveis irregularidades neste domínio - pode ser estabelecida e disciplinada na lei primordialmente como preventiva ou primordialmente como repressiva. Será preventiva se se destinar prima ordine a evitar as situações ilegais de privação de liberdade no internamento, tornando este dependente (na sua licitude) de autorização de um órgão judicial; será repressiva se tender prima ordine a fazer cessar quaisquer situações ilegais que porventura se verifiquem (mas após a sua verificação).
A intervenção preventiva é necessária a todos os casos são examinados por um órgão judicial, que se assegura da legalidade do internamento; e de forma alguma exclui - embora, como é evidente, reduza em muito -- a necessidade de intervenção repressiva, nos casos de ilegalidade superveniente, e ainda nos casos em que o exame judicial haja conduzido a conclusão inexacta (sem falar no caso em que tenha sido ilicitamente pretendo). A intervenção repressiva é eventual verifica-se apenas nos casos em que qualquer irregularidade chegue ao conhecimento do órgão judicial.
A intervenção preventiva pode ser ainda anterior ao internamento (regime de autorização} ou posterior a ele [regime de aprovação ou confirmação, que é o actualmente vigente (1)]. A intervenção repressiva é, como é óbvio, necessàriamente ex post facto. Uma e outra têm vantagens e inconvenientes.
A primeira constitui uma garantia sólida de respeito por um direito da relevância do direito de liberdade: direito originário, natural, fundamental, primitivo ou pessoalíssimo, no dizer dos civilistas, direito e garantia individual do cidadão português, pelo artigo 8.º da Constituição Política. Tem porém a desvantagem de acarretar uma maior massa de trabalho aos já sobrecarregados órgãos judiciais, e de complicar em extremo os processos de administração, não podendo ser, na maioria dos casos, já devido à massa de trabalho que impende sobre os juizes, já devido à sua falta de preparação técnica neste sector, mais do que uma vigilância meramente formal, diremos mesmo aparente (e perigosa então porque acobertadora de responsabilidades), do cumprimento dos pressupostos do internamento.
Por isso parece à Câmara que as vantagens de uma intervenção judicial necessária - mesmo segundo o regime da legislação actualmente em vigor, de confirmação se post facto (que em qualquer dos casos não livra o abusivamente internado dos vexames do internamento em si) - não superam nem igualam, pelo menos no caso de internamento em estabelecimentos públicos, os inconvenientes. E propõe por conseguinte para este caso, um regime de mera intervenção judicial repressiva, moldado sobre as disposições do projecto que a regulavam já (designadamente bases XVIII, n.º 6. XIX, n.º 2. XXIII, etc.).
Ver-se-á adiante que se contrabalança esta diminuição de garantias por uma providência que parece à Câmara largamente superá-la: a imposição da necessidade de uma periódica inspecção, por parte das autoridades psicossanitárias, à legalidade da situação e condições de internamento dos hospitalizados e internados.
Por último, comem afastar um argumento que prima facte se poderia invocar contra o regime defendido pela Câmara Corporativa o argumento segundo o qual o regime de intervenção judicial necessária seria imposto pelo § 4.º do artigo 8.º da Constituição Política (na tradição do artigo 333. º do Código Civil).
O problema, aliás, note-se, só se poria quanto ao internamento em regime fechado, o qual, privando o doente [segundo a base VIII da Lei n.º 2006 e o artigo 52.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 34 502] «das garantias dos assistidos em hospitais comuns», designadamente do direito de saída (1), bem poderia considerar-se verdadeira detenção para efeito de aplicação do § 4.º do artigo 8.º da Constituição Política, e bem se compreenderia exigir autorização judicial preventiva.
Mas, lendo-se com atenção a referida disposição constitucional, chega-se à conclusão que ela impõe apenas e ùnicamente que «a detenção em estabelecimento de alienados» se leve a efeito sòmente «mediante ordem por escrito da autoridade competente», a qual parece à Câmara poder ser uma autoridade administrativa, e não necessàriamente jurisdicional.
33. Quanto à intervenção dos órgãos ou autoridades administrativas de saúde mental, ela deve ser preventiva e repressiva.
O primeiro ponto, estreitamente ligado ao regime jurídico das formalidades de internamento, será tratado com o necessário detalhe num momento ulterior.
Quanto ao segundo, propõe a Câmara o restabelecimento de um regime que já tem entre nós a adições, pois constava já do artigo 7.º do regulamento do antigo Hospital de Alienados de Rilhafoles, regulamento aprovado por Decreto de 7 de Abril de 1851 (2) o regime de inspecção periódica obrigatória da situação jurídica e condições de internamento dos internados nos diferentes estabelecimentos de saúde mental, públicos ou privados.
Esta inspecção periódica é confiada às direcções dos centros de saúde mental (base X, alínea f), do projecto da Câmara)]. Para além desta atribuição de competência (à direcção, note-se, e não ao director), parece à Câmara que, numa lei de bases, convém apenas consagrar o princípio, numa regra flexível e maleável, deixando deliberadamente para regulamento os pormenores da sua concretização.
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(1) O regime de aprovação posterior ao inteiramente, apresenta já de certo modo também natureza repressiva. No entanto o seu espírito é de evitar que os abusos, embora tenham começo de execução, sejam «levados a efeito», como diz o artigo 8.º § 4.º da Constituição Política. Por esse motivo, prefere-se a sistematização apontada.
(1) Por direito de saída entende se aqui o direito de abandonar o estabelecimento, não evidentemente o de saída transitória. Sobre estes pontos, cf Prof Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II p 462.
(2) «Para evitar os abusos que possam cometer se na detenção dos alienados, assim como para obstar a que se atente contra a liberdade e segurança pessoal dos indivíduos dando os como alienados, ou seja no acto da sua admissão ou durante a sua permanência no Hospital, são incumbidos os membros da administração superior do Hospital de fiscalizar a admissão dos doentes e de visitar, en officio, de três em três meses pelo menos, o mesmo Hospital fazendo os convenientes, investigações para conhecerem a verdadeira posição e estado de cada alienado, e recebendo as reclamações que em todo o tempo lhes queiram dirigir, a respeito de qualquer alienado, os seus parentes ou amigos». Vide também artigo 16.º, § 17.º