888 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 116
Considerada, porém, a primacial importância do assunto, pede-me a consciência que diga, sómente de passagem, duas palavras para significar, apenas e lealmente, o que sinto, através do seguinte raciocínio.
Salvo a devida consideração por quem assim não julgue, pode pensar-se e ter-se como assente que a designação do Chefe do Estado deve normalmente ser feita pelo meio natural da hereditariedade. Pode, todavia, pensar-se também que as circunstâncias presentes não são propícias à instauração da realeza, aliás tão perfeitamente compatível com as instituições vigentes que nenhuma outra mudança nelas determinaria, mas instauração, decerto, imprescindível para fazer funcionar aquele meio de designação. Nestas condições, e não sendo, entretanto, indiferente o maior bem comum que for neste momento possível realizar, pode reconhecer-se que entre o artigo 72.º da Constituição tal como está em vigor (e em vigor corre o risco de continuar se não for votada a sua modificação) e as alterações do mesmo artigo constantes da proposta do Governo ou do projecto do Sr. Deputado Cerqueira Gomes existe grande e evidente diferença para melhor.
Como disse, porém, no começo, não é meu propósito analisar as aludidas alterações do artigo 72.º da Constituição propostas e projectadas. O que pretendo, como objectivo da minha intervenção neste debate, é apenas deter-me um pouco no exame de parte do projecto de lei n.º 23, subscrito em primeiro lugar pelo Sr. Deputado Carlos Moreira. Vejo ali vincadas algumas ideias a que desejaria poder dar o merecido relevo, não porque na Constituição representem matéria inteiramente nova, senão precisamente porque, estando nela implícitas, é de razão que se exprimam pelos seus nomes, sendo exacta e manifestamente oportuno numa lei de revisão passar-se do que porventura chamar se poderia o balbuciar para a enunciação clara e desassombrada. As águas turvas só podem servir a pescadores suspeitos, e com clareza é que todos nos entendemos.
A três das ditas ideias me referirei, assinalando desde já que todas são redutíveis à de justiça: justiça no emprego dos elementos fomentadores da produção; justiça entre os homens nas suas relações com o capital; justiça para com Deus. Aludo aos artigos 5.º, 6.º e 1.º, respectivamente, do mencionado projecto de lei n.º 23, cumprimentando os seus autores pela feliz iniciativa que tiveram.
Relativamente ao artigo 5.º, está a alteração nele contida em lógico acordo com a natureza e o fim de uma verdadeira economia.
Na realidade, a ordem natural estabelecida pelo Criador tudo dispôs para serviço do homem e este para só a Deus servir; por isso, uma boa e sã economia tem de estar necessariamente ao serviço do homem, e, assim, a técnica, os serviços e o crédito, como elementos fomentadores da produção, não podem efectivamente desviar-se «das finalidades sociais e humanas para cuja satisfação existem», como se diz no projecto; por isso, também a técnica e os outros mencionados elementos, por mais perfeitos que devam ser, nunca em si mesmos serão um fim, mas unicamente um meio a que jamais poderemos servir ou enfeudar-nos. Importa, por outro lado, proclamar bem alto esta doutrina no texto constitucional, não só para a termos sempre presente ao nosso pensamento e à nossa actuação, mas também para assinalarmos devidamente o espírito da nossa economia, diametralmente oposta à economia materialista do comunismo ateu.
Assim procedendo teremos, pois, praticado a justiça na utilização e na ordenação dos auxiliares da produção.
Quanto ao artigo 6.º do projecto, em que se pretende acrescentar um novo número ao artigo 31.º da Constituição, é evidente a legitimidade do objectivo que ali se propõe, considerado em face dos princípios sociais que nos orientam. A luz desses princípios, não se pode deixar de reconhecer que os lucros exagerados e anómalos do capital são uma injustiça, que é preciso impedir, devendo, além disso, não se perder de vista que, aio que toca ao seu uso e aplicação, a riqueza tem de constituir não sómente uma função social, espalhando utilidades e benefícios em favor da sociedade, como até um veículo da caridade, no sentido de que o supérfluo dos ricos é património dos pobres. Dar relevo a estas verdades, integrando-as expressa e destacadamente no programa da vida económica e social do Estado, afigura-se-me, pois, inteiramente fundamentado e necessário nos tempos que vão correndo.
A aprovação do projecto nesta parte equivalerá, por conseguinte, a contribuir para que impere a justiça e, portanto, a paz entre os homens nas suas relações com o capital.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Na sequência apenas do meu enunciado ocupa o último lugar o artigo 1.º do projecto em análise, e a que me cumpre agora referir; apenas nessa sequência, repito, porque na ordem dos valores, tem a matéria daquele artigo a primazia, com uma evidência tão luminosa, uma importância tão alta e um imperativo tão categórico que, por desnecessário, parecerá uma afronta tentar persuadir esta Assembleia tão ilustre a aceitá-la e aprová-la. Não cometerei esse acto tão reprovável, mas porque do aliás douto e respeitável parecer da Exma. Câmara Corporativa é possível evolar-se, pairando no espaço como ave receosa e pardacenta, a dúvida, não será descabido, apenas no intuito de ajudar ao fortalecimento da convicção, por certo já assente, lembrar algumas razões que abonam o projecto nesta parte.
Assim, se olharmos a tradição, não podemos duvidar de que sempre a Nação Portuguesa acreditou em Deus e confessou a sua crença n'Ele, mais até: nasceu e engrandeceu-se na fé católica. Fiel a essa fé, dela sempre deu testemunho inequívoco, e ainda há poucos dias, para não irmos mais longe, o repetiu de maneira grandiosa e apoteótica na inauguração do monumento nacional a Cristo-Rei, tendo afirmado pela voz autorizada do venerando Chefe do Estado que a sua «religião é a católica, e que reconhece a divindade de Cristo e tem a Mãe de Deus como Padroeira».
Lamentavelmente, existem, no entanto, sobretudo na África e na Asia, alguns milhões de portugueses que não professam o catolicismo; mas todos eles, incluindo os próprios pagãos, acreditam em Deus, ou, de toda a maneira, num princípio ou ente divino que para eles é Deus, só ficando de fora os comunistas, esses, porém, por definição antinacionais.
Ora a projectada afirmação de fé religiosa não passa de uma afirmação de sentido meramente teísta (essencialmente - falo em geral - simples invocação do nome de Deus), susceptível de ser interpretada e aceite sem repugnância por todos os portugueses e muito menos restrita e melindrosa do que as que já constam em vigor nos artigos 45.º e 43.º, § 3.º, da Constituição, em que se considera a religião católica como religião na Nação Portuguesa e se declara que o ensino ministrado pelo Estado visará a formação de todas as virtudes morais, orientadas pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País.
Porque haveria, pois, de repugnar a pretendida afirmação do projecto, tomada no sentido que lhe dei e compatível com as circunstâncias, sem repugnarem