932 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 119
depressa por esse caminho. Mas, ao mesmo tempo, clama-se contra toda a limitação às liberdades individuais, contra toda a imposição de disciplina colectiva, ou, numa palavra, contra todo o reforço de autoridade do Poder.
Há certamente nisto uma grande contradição, que consiste em no mesmo tempo querer que o Estado faça tudo e só organize por forma a não poder fazer coisa alguma. Contraditória, a meu ver, o certo é que a aspiração do regresso àquelas fórmulas políticas, que no seu conjunto constituem o esto do de liberdade, se apresenta como uma das teses centrais de uma corrente de opiniões: corrente que não está connosco, mas que ainda assim a Assembleia Nacional, precisamente porque é nacional, não pode ignorar.
Ao afirmar que a necessidade de um governo forte, de uma autoridade firme, é exigência da própria gravidade dos problemas que há para resolver, não me esqueci de que lia aspirações em sentido contrário. E peço que me seja permitido abrir um parêntesis nas minhas considerações para definir o que sinto e penso a tal respeito.
Eu não reconheço que entre esses que se dizem nossos adversários e os que verdadeiramente estão integrados no espírito da Revolução Nacional n afeição à liberdade possa servir de fronteira ou ser o sinal da separação. Pela liberdade, como fim imanente ao homem e objectivo supremo do labor público, somos, certamente, todos nós. A distinção estará, portanto, apenas na forma como entendemos a liberdade.
São do grande Pontífice Pio XII estas palavras: «Através de todas as mudanças e vicissitudes, o fim de toda a sociedade fica idêntico, sagrado e obrigatório: o desenvolvimento dos valores pessoais do homem, na medida em que ele é a imagem de Deus. E fica sempre para cada membro da família humana a obrigação de realizar aqueles fins imutáveis, qualquer que seja o legislador e a autoridade a que esteja submetido». Liberdade é para nós, e creio que para todos os que têm uma concepção cristã da vida, precisamente a possibilidade do desenvolvimento dos valores pessoais do homem, a conquista da plenitude espiritual, o triunfo da pessoa sobre os determinismos que a escravizam, a inferiorizam, a pervertem, a fazem sofrer ou a fazem pecar.
Na sua projecção política nenhum conceito de liberdade é tão imperioso ou tão amplo como esse, visto que ele pressupõe a realização de todas as liberdades parcelares, que são vias conducentes à plenitude espiritual. O Estado reconhece-se na obrigação de ir libertando os homens da incultura, da doença, da invalidez, do desemprego, da miséria, da falta do lar - tudo condições que não fazem de per si o homem livre, mas sem as quais se não pode ser livre. Para isso tem o Estado de ser forte: e a autoridade aparece como imposição da liberdade.
Supomos que aqueles que já se habituaram a chamar-nos inimigos da liberdade têm do problema uma perspectiva completamente diferente: a noção restringe-se à maior ou menor latitude na definição de exercício dos direitos políticos individuais; e porque toda a autoridade representa um limite imposto, a autonomia política individual, os conceitos de autoridade e liberdade aparecem como contraditórios: o homem, sob o ponto de vista puramente político, irá sendo mais livre na medida em que o Estado se for tornando mais débil.
Compreende-se que este ideal tenha surgido no decurso do Século XVIII como aspiração de camadas sociais que tinham atingido alto nível de prosperidade económica e para as quais, portanto, a liberdade política era já a única que importava conquistar. Compreende-se que essa aspiração continue a constituir o programa de gentes da classe média, que têm assegurado tudo o que é necessário para viver e já esqueceram que na doença, no analfabetismo ou na subalimentação não há liberdade possível.
Eu vou até compreender o egoísmo cego dos que, para defenderem a sobremesa de uma liberdade complementar, contestam ao Estado o direito de ser forte, isto é, fecham os olhos à necessidade evidente de conquistar as liberdades fundamentais que suo exigidas pela dignidade humana. O que já não consigo compreender tão bem são os motivos do nosso silêncio quando nos chamam adversários da liberdade ; e não entendo porque parecemos ciosos em esconder do povo que a liberdade que essa meia dúzia reclama teria por alicerce odioso a escravidão da imensa maioria, porque o único fim da autoridade que defendemos é a realização dos imperativos de promoção humana, que são o fundo da filosofia social do regime.
E agora a segunda observação.
Quando me pronuncio no sentido do reforço da autoridade do Poder sinto-me na obrigação de distinguir entre o estado de autoridade e autoritarismo do Estado, conceitos que a semelhança das palavras aproxima, mas que não só não são afins como, em rigor, são contraditórias entre si. A autoridade é um estado de direito; o autoritarismo um estado de capricho. Aquela apoia-se na força das leis; este no arbítrio dos homens. Autoridade resulta do princípio legítimo da eficácia do poder; o autoritarismo nasce quando o princípio começou a desagregar-se ou quando a autoridade deixou de ser respeitada.
A distinção é importante, até porque alguns daqueles que dizem não aceitar n concepção do estado de autoridade, talvez no fundo protestem apenas contra aspectos de autoritarismo, que nunca deixam de se infiltrar.
Exemplificarei o que pretendo dizer com o problema da situação da imprensa, problema que está incluído na economia do debate por a ele se referir o projecto do ilustre Deputado Sr. Dr. Carlos Moreira.
A quem use prestar atenção ao desenvolvimento dos problemas não terá passado despercebido que esta questão, primitivamente enunciada como questão da liberdade da imprensa, foi evoluindo e hoje, se a reclamação de uma liberdade completa continua a usar-se para fins puramente políticos, o que a imprensa reclama é, sobretudo, a formulação de um regime legal definido.
A imprensa exerce uma função pública de enorme projecção; é, no seu conjunto, uma actividade de interesse e ordem pública, e por isso mesmo não pode deixar de estar submetida à superior coordenação do Estado, porque é regra sem excepção que, se as actividades puramente privadas se devem desenvolver à margem dessa intervenção, as actividades públicas têm de lhe ficar submetidas. Este é um princípio básico do ordenamento jurídico de todos os países e não se vê por que havia a imprensa de lhe fazer excepção.
E todavia faz.
Ao passo que todas as actividades têm o seu estatuto definido na lei, e aqueles que as exercem podem conhecer claramente os seus direitos, responsabilidades e obrigações, a imprensa está ainda sob o regime nebuloso de um puro arbítrio, e vê a sua vida dependente de critérios pessoais que oscilam consoante a disposição ou a opinião de quem as exerce, ou conforme o sabor dos tempos, ou até, por vezes, em função de factores que são de todo em todo imprevisíveis. Essas oscilações e imprevisibilidades são, aliás, males secundários; poderiam até não se verificar, sem que por isso o erro de origem desaparecesse, porque o mal está em se deixar ao arbítrio dos homens o que deveria pertencer à disciplina das leis.