552 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 162
Vem este breve e despretensioso preâmbulo a propósito de uma notícia que entendo dever trazer a esta Assembleia e do apelo que, por mor dela, hei-de formular no final destas ligeiras considerações.
Sr. Presidente: não longe de Vila Real, a uns escassos 8 km, na estrada que dali sai para Sabrosa, numa placa camarária se inscreve uma designação toponímica que, para a grande maioria dos transeuntes, nada representa, nada evoca.
Todavia, o lugar assinalado foi durante a ocupação romana da Península talvez importante povoação, mas certamente um recinto sagrado, onde se exerceu o culto de várias divindades, algumas destas orientais, as quais Roma, sem escrúpulo e avisadamente, incorporava no seu Olimpo, à medida que as legiões vencedoras lhe acrescentavam as terras dos seus adoradores. Não foi Roma, como se sabe, exigente em matéria religiosa.
Panóias, ou Panoias, se chama esse lugar, nome que correspondeu a uma região ou distrito da antiga divisão administrativa romana da Península, com a categoria de município, pela primeira vez enumerada como tal nos relatos do Concílio de Lugo, realizado no tempo do Reino Suevo, com o qual confinava pelos montes Narvázios, maciço montanhoso formado pelas actuais serras do Marão, Meia Via, Mesio e Alvão. Hoje o que se chama Panoias pertence à actual freguesia de Vale de Nogueiras, do concelho de Vila Real.
Mercê de informações que um erudito pároco daquela freguesia e a Câmara de Vila Real enviaram à Academia Real da História, publicou em 1762 o padre e académico daquela agremiação D. Jerónimo Contador de Argote ...
O Sr. Carlos Moreira: - Muito bem!
O Orador: -... no livro da sua autoria Memórias para a História Eclesiástica, da Arcebispado de Braga, a primeira notícia e interpretação daquela estação arqueológica.
Segundo o mencionado Contador de Argote, ali se viam vestígios de povoação romana, e não raro os lavradores, ao arrotear as terras, arrancavam pedras lavradas, frisos de diferentes feitios, telhas, tijolos, «tudo de barro muito fino e encarnado que não há por aquelas partes», como ele diz.
Além disso, nas paredes da igreja e de algumas casas viam-se capitéis, bases, pedaços de colunas, frisos e outras muitas obras e até pedras com inscrições naquelas paredes incorporadas, como delas fazendo parte.
As principais, porém, e mais curiosas antiguidades são enormes fragões, cujas inscrições e pormenores denotam a remota existência naquele lugar de um santuário luso-romano de data indeterminada, mas seguramente anterior a Constantino e depois de Augusto.
Argote considera-o dedicado aos deuses infernais; o sábio Leite de Vasconcelos diz que era um templum onde, ao lado da principal divindade, Serápis, se adoravam várias outras. Este preclaro e arguto investigador, a quem Panoias deve aturado estudo, diz que ali «a religião dos nossos maiores deixou vestígios valiosíssimos».
Já o conselheiro Hintze Ribeiro, como Ministro das Obras Públicas, havia, mandado copiar as inscrições que existiam em Panoias, donde se infere o interesse que elas mereciam à investigação histórica, e ainda prestimoso trabalho fora publicado há poucos anos, nos Anais do Instituto do Vinho do Porto, pelo Dig.mo Sr. Dr. Russel Cortês.
Leite de Vasconcelos ainda viu Panoias quase tal qual a descreveu Contador de Argote, mas já um dos monumentos epigráficos de alto valor havia desaparecido «sob o camartelo de um pedreiro analfabeto».
O Sr. Carlos Moreira: - Isso até os alfabetos fazem, quanto mais os analfabetos.
O Orador: - Sr. Presidente: não é meu intuito, nem os ilustres colegas mo tolerariam, vir aqui repetir as lições dos mencionados investigadores acerca de Panoias e das antiguidades e vestígios que permanecem dela. As referências feitas têm outro objectivo: assinalar a importância daquela estação arqueológica.
E, assim, posto em relevo o interesse que o seu estudo mereceu àqueles investigadores, mormente ao infatigável mestre Leite de Vasconcelos, e ainda a Hintze Ribeiro, ao cuidado do qual se deve a leitura e interpretação do citado monumento epigráfico desaparecido, impende sobre mim o dever, já que trouxe o assunto ao conhecimento desta Assembleia, de narrar o estado actual do santuário de Panoias e pedir a intervenção que ele inadiàvelmente reclama.
Já Argote, na minuciosa notícia por si publicada, descreve a imprópria e criminosa utilização do objectos e materiais que, dispersos e truncados, ele vira nas paredes das casas, na igreja, na casa do reitor. Alude até à tradição, segundo a qual as muralhas da Real Vila de D. Dinis, hoje Vila Real, teriam sido levantadas com as pedras da antiga Panoias. Mas ainda viu muita coisa.
Dá a nota e descrição de onze grandes rochedos onde, a julgar pelas tinas abertas no granito e outros curiosos pormenores, e ainda pelas inscrições, já a custo lidas, se deduz que ali se faziam sacrifícios de vítimas e se entrevê, segundo Leite de Vasconcelos, a existência de mistérios serápicos ou cerimónias secretas de iniciação. Viu ainda uma inscrição, hoje desaparecida, mas talvez não perdida, em caracteres que o mesmo Argote diz serem da escrita do algum povo da península pré-romana, dos Túrdulos, talvez, pois que não são latinos, nem gregos, púnicos ou hebraicos, nem de outras línguas orientais, monumento de especial valia.
Leite de Vasconcelos, quando visitou Panoias, já a documentação noticiada por Argote estava diminuída.
Ora, a partir deste momento, a acção corrosiva do tempo e a ignorância e a irreverência dos homens continuaram a fatal ou criminosa destruição daquele recinto sagrado. O tempo tornara quase ilegíveis as inscrições, algumas das quais felizmente reproduzidas, e soterrara vestígios talvez ainda recuperáveis. Os rochedos trabalhados servem de eiras ou de alicerces de tugúrios e palheiros. Os musgos e construções escondem, decerto, muitas das coisas a que alude Contador de Argote, e mais paredes têm sido feitas à custa de amputações naqueles rochedos.
Escavações bem dirigidas, expropriações de humildes casebres e buscas pormenorizadas e bem orientadas poderão juntar ao que ainda existe valioso contributo.
E perguntar-se-á: mas nenhuma autoridade, nenhum estudioso, um curioso sequer, tentou entravar essa iconoclastia tenebrosa?
Às juntas de freguesia e às câmaras municipais, que eu saiba, nada se deve: têm sido indiferentes às falas do passado ou alérgicas à poeira das idades. É, porém, de justiça aqui mencionar o nome do um estudioso, que tudo tem tentado para salvar da perda total tão importante monumento: o médico vila-realense Dr. Júlio Teixeira. Depois de escrever a história de Panoias, ali levou entidades qualificadas, entre as quais o saudoso Ministro Duarte Pacheco. Este, comovido e indignado, porque encostado a um dos fragões referidos se construíra um palheiro, mandou que se expropriasse